Folha de S. Paulo


Cientistas 'turbinam' trabalhos apresentados em evento da Unicamp

Pelo menos 30 pesquisadores brasileiros "turbinaram" seus currículos com trabalhos apresentados em um evento realizado por uma editora chinesa, acusada de transgredir normas acadêmicas de publicação, em parceria com a Unicamp.

Realizada em Campinas em agosto de 2014, a 3ª Conferência Internacional de Engenharia Civil e Arquitetura foi organizada pela editora IACSIT (International Academy of Computer Science and Technology Information).

A IACSIT está desde 2012 na lista de"periódicos predatórios" elaborada por Jeffrey Beall, professor da Universidade do Colorado em Denver (EUA), considerada referência internacional.

A relação indica editoras que cobram para publicar artigos e têm critérios flexíveis para aceitá-los.

Em vez de reunir como anais de congresso os 31 trabalhos da conferência, como é o procedimento padrão na academia, a IACSIT os publicou como artigos de um de seus periódicos.

Nas avaliações de currículos para concursos, promoções, bolsas e auxílios a projetos de pesquisa, os estudos aceitos por revistas científicas contam mais que os apresentados em congressos.

Os trabalhos do evento foram publicados na revista "International Journal of Engineering and Technology" em 2014, mas estão nas edições on-line datadas de junho a dezembro de 2015. E não são versões preliminares antecipadas, usuais em alguns periódicos prestigiados. Estão em formatos definitivos, já com páginas numeradas, permitindo serem referenciados em currículos. E sem nenhuma menção ao evento da Unicamp.

A professora Gladis Camarini, da FEC (Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp), foi organizadora da conferência junto com a diretoria da IACSIT. Ela própria foi coautora de seis estudos apresentados no evento.

Camarini registrou os trabalhos na classificação de "artigos completos publicados em periódicos" em seu currículo da plataforma eletrônica Lattes.

Diferentemente da professora, dois alunos e coautores registraram os estudos feitos com ela no item de trabalhos de eventos em seus currículos Lattes. A docente não respondeu às perguntas sobre sua forma de registrar os trabalhos

O evento recebeu R$ 10 mil do CNPq, agência federal de fomento à pesquisa, e R$ 18 mil da Capes, órgão do Ministério da Educação.

Sem esclarecer quanto gastou com a reunião, a Unicamp afirmou que pagou despesas usuais de eventos científicos, como passagens e diárias de palestrantes nacionais e internacionais.

A Unicamp destacou ainda que 14 professores da FEC fizeram parte da comissão científica do evento, formada por 41 pesquisadores. Não respondeu, porém, se o grupo sabia de alguma das diversas informações negativas sobre a IACSIT na internet, entre elas o descredenciamento de eventos da editora em 2012 por parte do prestigiado IEEE (Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos), fundado em 1884 nos EUA.

Da mesma forma que o CNPq, a Capes afirmou que seu processo de análise e aprovação do apoio ao avento não detectou nada de negativo sobre a editora chinesa em questão.

A IACSIT não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem.

PADRÃO

Ainda que a editora chinesa esteja na lista de "predatórios", sua revista "International Journal of Engineering and Technology" está classificada na plataforma Qualis Periódicos, da Capes, que serve para orientar pesquisadores, professores e pós-graduandos brasileiros a escolher revistas científicas para publicar seus artigos.

Apesar de irregular, o registro de trabalhos de eventos como artigos de periódicos em currículos está se tornando comum, segundo o geógrafo Marcos Pedlowski, professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense.

"A relação dessa prática com as publicações predatórias é apenas a ponta de um iceberg com muitos outros aspectos graves ligados à pressão acadêmica cada vez maior pela produtividade dos pesquisadores com artigos em periódicos", disse Pedilowski. "Estamos crescendo em quantidade mas estagnando em qualidade."

O evento da IACSIT com a Unicamp não teria acontecido se a "International Journal of Engineering and Technology" e outras de suas revistas não estivessem no Qualis, afirmou o pesquisador.

A Unicamp afirmou que a conferência teve a participação de palestrantes reconhecidos internacionalmente e que evento foi muito bem sucedido, apresentaram trabalhos importantes dentro dos campos da engenharia civil e da arquitetura.

Sobre a lista de "predatórios" de Beall, a universidade disse em nota que não considera que um bibliotecário acadêmico "com apenas dois anos no cargo de professor, conforme consta em seu próprio blog, tenha mais competência para classificar periódicos do que a avaliação tradicionalmente reconhecida no mundo científico, que no caso foi feita por professores que assessoram a Capes".

Em relação à classificação da revista "International Journal of Engineering and Technology" no Qualis, a Capes afirmou que a cada nova avaliação, que trienal passará a ser quadrienal, "os procedimentos são atualizados, modificados e aprimorados em função dos aprendizados de cada processo".

O CNPq não respondeu se pretende tomar medidas sobre a forma como foram registrados trabalhos do evento em pelo menos 30 currículos na plataforma Lattes.


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