Folha de S. Paulo


Em laboratório, cientistas curam neurônio autista

Um dente de leite doado por um menino autista de oito anos permitiu a cientistas testar pela primeira vez a ação de medicamentos sobre células nervosas afetadas por esse transtorno psiquiátrico.

Aproveitando tecido vivo extraído da amostra cedida, a bióloga Karina Griesi Oliveira, da USP, identificou uma mutação genética no paciente. Depois, ainda conseguiu recriar os neurônios dessa criança em laboratório para investigar quais eram os problemas em suas células.

Alex Argozino/Editoria de Arte/Folhapress

Tudo começou em 2009, quando os pais do menino o levaram ao serviço de aconselhamento genético do Instituto de Biociências da USP para uma avaliação.

A criança já tinha o diagnóstico de autismo, mas nunca havia feito exame genético para investigação das causas. A coleta do dente de leite dos pacientes é praxe na instituição desde 2001, ideia da geneticista Maria Rita Passos-Bueno. O objetivo é obter amostras de DNA e material vivo para culturas de células.

Ao estudar o DNA do paciente, Karina não conseguiu associá-lo a nenhuma variedade genética de problema psiquiátrico. O menino era portador de autismo clássico, transtorno que em geral é atribuído a uma combinação de múltiplos genes, talvez associados a problemas de desenvolvimento embrionário ou ambientais.

GENE SUSPEITO

Uma mutação genética no paciente, porém, deixou Maria Rita intrigada.

O menino tinha desativada uma de suas cópias do gene TRPC6, envolvido na regulação de impulsos nervosos em alguns neurônios. Sob orientação de Maria Rita, Karina passou uma temporada investigando o tema na Universidade Yale (EUA).

Com acesso a um banco de dados de genomas de outros pacientes, a bióloga encontrou outras duas pessoas autistas que tinham mutações no TRPC6, o que fortaleceu sua suspeita da ligação do gene com o autismo. Provar essa relação, porém, ainda iria requerer mais trabalho.

"O autismo tem uma genética muito complicada, com muitos genes envolvidos, e ainda não sabemos bem quais deles", explica Karina.

Tudo parecia indicar que o TRPC6, por si só, não seria capaz de desencadear esse transtorno mental, mas seria um gene de propensão. Mas isso tornava difícil estudá-lo apenas com leitura de DNA e diagnósticos psiquiátricos.

Para continuar o trabalho, Karina conseguiu passar uma temporada em outro laboratório americano, coordenado pelo paulista Alysson Muotri, na Universidade da Califórnia em San Diego.

Muotri é um especialista em criar neurônios a partir de células iPS, que têm a versatilidade de células de embriões, mas podem ser criadas a partir de células adultas, como aquelas do dente do menino autista.

Com esse método, a bióloga recriou neurônios do paciente num pires de laboratório e viu que a mutação no TRPC6 impedia células de adquirirem formato correto e se interconectarem.

Seu trabalho, descrito agora em estudo na revista "Molecular Psychiatry", comprovou a ação do gene como fator de propensão ao autismo e ainda apresenta drogas candidatas a corrigir o problema.

MEDICAMENTO

Quando os biólogos da USP e de San Diego identificaram uma mutação genética no menino autista que fornecera amostras de célula para o estudo, não demoraram a encontrar uma droga candidata a atacar o problema.

O gene que aparecia desativado no paciente, o TRPC6, está ligado ao nível de cálcio de neurônios, atividade crucial para seu funcionamento.

Pesquisando a literatura médica, os cientistas descobriram que a hiperforina, um composto presente na erva-de-são-joão –planta com propriedades antidepressivas– atuava diretamente neste canal. O fármaco já havia se mostrado seguro.

Além de corrigir as células em laboratório, os pesquisadores chegaram a administrar a droga para o paciente, que foi tratado por três meses, período curto demais para avaliação de eficácia. Os pais da criança desistiram da ideia, que requeria interrupção de outros tratamentos. Cinco anos depois, a USP perdeu contato com o casal.

Cientistas defendem agora que o fármaco passe por teste formal, mas afastam a ideia de que a hiperforina seja uma panaceia contra o autismo. Só portadores de mutação no TRPC6 ou em genes similares devem se beneficiar.

"Se for para fazer um ensaio clínico para essa droga, seria preciso uma seleção genética para saber quem é compatível e quem não é", diz Muotri. Um legado da pesquisa é que sua metodologia pode ser usada para investigar outras dezenas de genes que vêm sendo associados ao autismo clássico.


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