Folha de S. Paulo


Sondando os mistérios do cérebro

Seria de se imaginar que a maioria dos cientistas endossaria a ideia de gastar US$ 130 milhões por ano em pesquisas nos próximos dez anos, como a Comissão Europeia pretende fazer com o Projeto Cérebro Humano.

Em vez disso, porém, centenas de neurocientistas assinaram uma carta enviada à comissão no início deste mês, criticando sua "abordagem demasiado estreita", falta de transparência e a meta exageradamente ambiciosa de criar uma simulação computadorizada do cérebro humano.

"É como ter lançado uma missão à Lua quando ainda não sabíamos construir um avião", disse ao NYT o neurocientista Zachary Mainen, do Centro Champalimaud do Desconhecido, em Lisboa, que co-assina a carta. "Não conseguimos simular os 302 neurônios do cérebro de um nematódeo. É precoce querer simular os 100 bilhões de neurônios de um cérebro humano."

Nos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde disseram no mês passado estar procurando US$ 4,5 bilhões para cobrir sua parte da Iniciativa Cérebro do presidente Barack Obama, anunciada um ano atrás com verbas iniciais de US$ 100 milhões. Contraparte americana do Projeto Cérebro Humano, sua meta é igualmente ambiciosa: desenvolver tecnologia para elucidar os mistérios do funcionamento do cérebro e, com o tempo, aprender a tratar desordens cerebrais.

Pesquisadores dizem que é um montante alto de dinheiro, mas talvez não o suficiente para uma das buscas científicas mais difíceis de nossos tempos.

Ainda não existe tratamento para muitas doenças cerebrais, como a esquizofrenia e o Alzheimer, e, apesar de décadas de pesquisas sobre serotonina e outros neurotransmissores, ainda não há uma cura comprovada para a depressão clínica, informou no NYT Gary Marcus, professor de psicologia na New York University. Para ele, as técnicas de escaneamento cerebral geraram mais interesse que resultados.

Marcus acha que a carta indignada enviada pelos neurocientistas este mês revela um fato simples: "A controvérsia lembra que nós não apenas estamos longe de ter uma explicação abrangente do funcionamento do cérebro, como nem estamos de acordo sobre a melhor maneira de estudá-lo ou sobre quais perguntas deveríamos estar formulando."

Falta aos cientistas cerebrais um avanço grande como a descoberta do DNA, que possibilitou aos biólogos entender a estrutura física das informações genéticas, permitindo que fizessem suas pesquisas com um mistério vital resolvido. Marcus diz que uma descoberta desse tipo seria uma "ponte" e que, para os pesquisadores do cérebro, ela traria um vínculo entre duas linguagens científicas díspares: a neurociência e a psicologia.

Uma vanguarda da neurociência, a gravação cerebral direta, permite que cientistas façam experimentos com pacientes, ouvindo o funcionamento interno do cérebro através de eletrodos implantados dentro do crânio. Ao estudar a biologia da memória em tempo real, informou o NYT, os pesquisadores esperam desenvolver tratamentos novos para pessoas que sofreram lesões cerebrais traumáticas, além de criar novos tratamentos para epilepsia, depressão, ansiedade e problemas cognitivos.

Em estudos preliminares, os cientistas descobriram que podem reforçar alguns tipos de memória, gravando diretamente e estimulando circuitos cerebrais profundos, segundo o NYT.

Uma abordagem mais experimental na gravação direta é o uso de implantes que ajustam níveis de estímulo quando sinais no cérebro se tornam fracos ou ruidosos demais. Especialistas dizem que há dúvidas práticas e éticas sérias em relação a esses tratamentos. Questiona-se se esses estímulos podem reproduzir a linguagem interna do cérebro e se esses experimentos podem fazer mais mal que bem.

"Precisamos lembrar sempre que não estamos falando a língua secreta do cérebro -estamos gerando alguns estímulos muito toscos", disso ao NYT o diretor de neurocirurgia do Centro Médico Albany, em Nova York, Anthony Ritaccio. "Quando você trabalha com o cérebro, precisa se lembrar o tempo todo que ainda sabemos muito pouco sobre ele."


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