Folha de S. Paulo


Caverna na Espanha é berço de neandertais, indica pesquisa

Uma caverna no norte da Espanha é o provável berço dos neandertais, humanos primitivos que colonizaram a Europa e o Oriente Médio na Era do Gelo e cujo sangue ainda corre nas veias das pessoas de hoje.

É o que sugere uma pesquisa publicada na edição desta semana da revista especializada "Science", coordenada pelo paleoantropólogo Juan-Luis Arsuaga, da Universidade Complutense de Madri.

Arsuaga e seus colegas tiveram a sorte de topar com um dos sítios mais ricos do mundo quando o assunto é evolução humana. Sima de los Huesos (algo como "fossa dos ossos", em espanhol), localizado perto da cidade de Burgos, conta com a maior coleção de fósseis de ancestrais da humanidade a ser descoberta num só lugar. São cerca de 30 indivíduos, entre os quais 17 crânios, vários dos quais tiveram de ser cuidadosamente remontados pelos cientistas espanhóis.

A dor de cabeça, no entanto, valeu a pena. No novo estudo, os pesquisadores apresentam datações mais precisas do sítio, concluindo que os hominídeos viveram por ali há 430 mil anos, e mostram, por meio da análise do formato dos crânios, que a população de Sima de los Huesos compartilha uma série de características importantes com os neandertais, os quais só apareceriam claramente no cenário pré-histórico europeu uns 200 mil anos mais tarde.

Javier Trueba/Reuters
Um dos 17 crânios de hominídeos encontrado em Sima de los Huesos, na Espanha
Um dos 17 crânios de hominídeos encontrado em Sima de los Huesos, na Espanha

Os detalhes dos crânios de Sima indicam que se tratava de uma população relativamente homogênea, com um mosaico de características "pré-neandertais" e outras mais primitivas, herdadas de ancestrais vindos da África. Eram criaturas de cérebro quase tão avantajado quanto o nosso.

FRIO? QUE FRIO?

Se a equipe espanhola estiver correta, os primeiros passos evolutivos da linhagem que desembocaria nos neandertais foram inusitados. Durante décadas, os antropólogos costumavam atribuir a peculiar fisionomia neandertal - como o grande nariz e a face fortemente projetada para a frente - à necessidade de se adaptar às condições gélidas da Europa durante o Pleistoceno. O narigão, por exemplo, ajudaria os hominídeos a aquecer o ar frio antes de mandá-lo para os pulmões.

Pode até ser que outras características da espécie, como o corpo atarracado, de fato tenham a ver com a adaptação ao frio, mas os crânios de Sima de los Huesos sugerem que os primeiros passos da "neandertalização" (sim, os próprios cientistas usam esse termo) vieram com alterações no formato da mandíbula e dos dentes, provavelmente associadas a detalhes da mastigação.

"Parece que essas modificações estão ligadas ao uso intensivo dos dentes da frente. Os incisivos mostram grande desgaste, como se os dentes estivessem sendo usados como uma 'terceira mão', o que é típico dos neandertais", diz Arsuaga. Tais alterações, por sua vez, acabariam levando à reorganização da anatomia do rosto como um todo - criando, portanto, a "cara" neandertal clássica.

No ano passado, o sítio espanhol virou notícia mundo afora, inclusive nesta Folha, graças à extração de pequenos trechos de DNA de um de seus hominídeos. Foi o mais antigo fragmento de material genético a ser obtido de um membro da linhagem humana, mas a importância do feito não se devia apenas à idade do DNA. Análises mostraram um possível parentesco entre o povo de Sima de los Huesos e os misteriosos denisovanos, "primos" dos neandertais que viveram na Sibéria há 40 mil anos.

Ainda não há uma explicação clara para essa conexão - pode ser, por exemplo, que o povo da caverna espanhola seja ancestral dos dois grupos mais tardios de hominídeos. A expectativa é que a equipe de cientistas consiga amostras mais completas de DNA, ajudando a esclarecer essa dúvida.

Mais tarde, alguns dos possíveis descendentes do povo de Sima de los Huesos acabariam se unindo aos primeiros seres humanos modernos. Calcula-se que até 4% do DNA das pessoas de hoje (com exceção dos africanos) tenha origem neandertal.


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