Folha de S. Paulo


Manipulação de DNA pode tornar realidade sonho de curar doenças

Reprodução
Crispr, técnica de edição do DNA que promete mudar o mundo

É muito difícil achar um biólogo que não esteja empolgado com a técnica de manipulação do genoma conhecida como Crispr (pronuncia-se "crísper"), que tem transformado o sonho de curar doenças alterando o DNA em algo cada vez mais perto da realidade.

Não é para menos: com ela, dá para escolher um ponto do genoma, cortar aquele pedacinho, jogar "defeitos" genéticos fora e ainda colocar uma versão corrigida do DNA no ponto certo. A próxima grande notícia envolvendo a Crispr, porém, deve vir de algo mais mundano (e igualmente importante): quem vai faturar com a técnica.

Isso porque, enquanto escrevo este texto, juízes ligados ao USPTO, o órgão responsável por regular questões de propriedade intelectual nos EUA, estão examinando os argumentos de dois gigantes da pesquisa biomédica que querem para si as principais patentes ligadas ao uso da Crispr –e, portanto, o direito de cobrar royalties (direitos intelectuais) sobre a tecnologia.

De um lado dessa querela está a Universidade da Califórnia em Berkeley; do outro, o Instituto Broad, uma parceria entre a Universidade Harvard e o MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts).

Ambos submeteram pedidos de patentes relativas à Crispr em 2012 -com uma diferença de seis meses. O primeiro veio de Berkeley, mas se referia apenas ao uso em bactérias.

Depois foi a vez do Broad, que tinha dois trunfos em mãos: descrevia um método para usar a técnica em células complexas, como as humanas, e pagou uma taxa que lhe garantiu uma análise mais rápida de seu pedido. Por isso, ao menos por enquanto, as patentes estão com o Broad.

Seja lá qual for a decisão, que deve ser anunciada até fevereiro, a natureza da briga ajuda a mostrar o que está em jogo. Estima-se que a tecnologia valha bilhões de dólares, e, nos últimos anos, empresas que pretendem empregar a Crispr já levantaram centenas de milhões de dólares mundo afora. Isso significa cada vez mais investimento em pesquisa –e que dificilmente as aplicações iniciais serão baratas.

E, por falar em aplicações, não parece seguro apostar que elas chegarão tão cedo a um número maior de pacientes. Os órgãos regulatórios e a comunidade científica dos países desenvolvidos têm agido, ao menos por enquanto, com o freio de mão puxado.

O temor é que aplicar o sistema à linhagem germinativa (óvulos e espermatozoides, basicamente) introduza na nossa espécie modificações irreversíveis, com efeitos ainda desconhecidos. Além disso, ainda acontecem os chamados efeitos "off target".

Isso se dá porque, para achar o local exato onde cortar no genoma, a tesoura molecular empregada na técnica se guia por uma sequência curta de "letras" de DNA –e o nosso genoma tem 3 bilhões de letras. Ou seja, sempre há a chance de a lâmina pegar o ponto errado do novelo, por assim dizer.

Trabalhos mais ousados –ou menos éticos– podem acabar vindo da China, cujo sistema regulatório é menos severo. De qualquer forma, nem a pressa chinesa será capaz de mudar um detalhe incômodo: a maior parte dos problemas de saúde e das características do ser humano depende de uma quantidade tão elevada de genes, sem falar da interação com o ambiente, que a Crispr está bem longe de produzir super-homens –ou monstros.


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