Folha de S. Paulo


Seca causa migração e transforma cidade na 'capital das araras' do Brasil

João Marcos Rosa
Em Campo Grande, as araras aprenderam a conviver com trânsito intenso, redes de energia, linhas com cerol, poluição sonora e do ar
Em Campo Grande, as araras aprenderam a conviver com trânsito intenso, redes de energia, linhas com cerol, poluição sonora e do ar

Em meio ao vaivém intenso de pedestres e veículos, emaranhados de fios elétricos, linhas com cerol e postes, objetos colorem e fazem barulho no céu de Campo Grande.

A cidade no centro-oeste do Brasil ganhou o título informal de "capital das araras", uma homenagem às aves que se adaptaram de maneira única ao ambiente urbano da capital de Mato Grosso do Sul.

É um fenômeno sem precedentes nessa escala no país, segundo biólogos que estudam as aves na cidade.

A proximidade do Pantanal –a maior área alagada do mundo, um mundo de água doce e vida selvagem do tamanho de Portugal– ajudou. Campo Grande é arborizada e ainda mantém manchas de cerrado, buritizais e inúmeras árvores frutíferas.

As araras aproveitam um belo cardápio de espécies exóticas e nativas do cerrado –encontram comida em pelo menos 14 árvores, como jatobá, ingá, cedro-rosa e tamarindo.

Indiferentes ao movimento e ao barulho, as araras fizeram morada em diferentes pontos da cidade, num fluxo que começou em 1999, após uma seca prolongada na região.

João Marcos Rosa
Aves fazem morada em troncos de árvores mortas e aproveitam abundância de árvores frutíferas na região, como o buriti
Aves fazem morada em troncos de árvores mortas e aproveitam abundância de árvores frutíferas na região, como o buriti

Optam por restos de buritizais, palmeiras secas e até ninhos artificiais, obra de moradores que começam mais e mais a se integrar com os bichos.

As araras ficam ainda mais visíveis nessa época do ano. É período de reprodução, que vai de julho a dezembro, e casais cruzam os ares em busca de ninhos para procriar.

Em geral, os psitacídeos –a família das araras, que inclui papagaios e periquitos– são monogâmicos e formam casais pela vida toda.

MIGRAÇÃO

Uma longa estiagem no ano de 1999 marcou a chegada das araras-canindé e de araras-vermelhas (Ara chloropterus) a Campo Grande. A seca, somada a desmatamentos e queimadas na zona rural e municípios do entorno, reduziu de forma brusca a oferta de alimentos para essas aves.

Na ocasião, o Instituto Arara Azul, que pesquisa o comportamento dos bichos, monitorou grupos de 27 a 48 araras que estavam em Terenos, a 32 km de Campo Grande, e poucos dias depois já circulavam pela capital.

Segundo a bióloga Neiva Guedes, presidente do instituto, hoje existem pelo menos 400 araras em Campo Grande, e mais de 200 filhotes já nasceram na cidade desde 2010.

João Marcos Rosa
Pesquisadora do Instituto Arara Azul em ação de captura de filhotes arara para monitoramento
Pesquisadora do Instituto Arara Azul em ação de captura de filhotes arara para monitoramento

De 2001 a 2005, Guedes acompanhou, a menos de 150 metros de sua casa, a reprodução de araras em um tronco de buriti. Observou disputas de casais, nascimento e voo de filhotes. E até interveio pela manutenção no ninho quando a avenida foi duplicada –o traçado da via acabou sendo desviado para preservar a árvore.

O instituto cadastrou 74 ninhos de araras em Campo Grande, dos quais 34 são monitorados. Um deles, por exemplo, fica em uma das esquinas mais movimentadas da cidade, a da rua Dom Aquino com avenida Duque de Caxias.

E as pesquisas mostram que, apesar das dificuldades impostas pelo ambiente urbano, as araras-canindé estão se reproduzindo na cidade com sucesso.

"Eles conseguem se manter na cidade o ano inteiro. E já fazem parte do cotidiano, a população se acostumou a ouvi-las todo dia", afirma Guedes.

ACOLHIMENTO

Há moradores que chegam a oferecer abrigo para as aves. O major do Corpo de Bombeiros Pedro Centurião, por exemplo, durante uma obra na área de lazer de sua casa, resolveu cortar as folhas de uma palmeira que sujava muito o quintal.

Foi a senha para as araras começarem a frequentar o tronco. A família de Centurião providenciou uma estrutura de madeira no alto da palmeira para facilitar a estadia dos hóspedes.

João Marcos Rosa
Araras chamam a atenção pela coloração, conformação do bico e gritaria; aves se tornaram atração para moradores
Araras chamam a atenção pela coloração, conformação do bico e gritaria; aves se tornaram atração para moradores

Isso foi há cerca de dois meses, e hoje um casal já choca três ovos no local. "Estamos ansiosos pela chegada dos filhotes", conta Centurião, de 51 anos.

Ao lado de Peru e Colômbia, o Brasil é o país mais rico do mundo em aves - são cerca de 1800 espécies. No caso dos psitacídeos, uma das famílias de características mais marcantes, facilmente reconhecível pelo bico, patas e cauda, é o país mais diverso do planeta, com 82 espécies.

Araras-vermelhas e araras-canindé estão entre as mais comercializadas no planeta. A diversidade de cores, sociabilidade, capacidade de adaptação e de imitar a voz humana atraem o interesse das pessoas em todo o mundo.

No caso das araras-canindé, que habitam desde o Panamá até a região central brasileira passando pelas Guianas, Venezuela, Peru, Colômbia, Equador, Bolívia e Paraguai, não há risco de extinção no Brasil, mas relatos de retirada de indivíduos da natureza são comuns.

Instituto Arara Azul
Arara com filhotes no interior de ninho; pesquisa mostrou que, apesar da influência do trânsito de veículos, 81% dos casais tiveram sucesso no voo de aves juvenis
Arara com filhotes no interior de ninho; pesquisa mostrou que, apesar da influência do trânsito de veículos, 81% dos casais tiveram sucesso no voo de aves juvenis

E afinal, o fenômeno das araras na cidade é algo bom ou ruim? Neiva Guedes diz ter pensado muito até concluir que sim.

"Se temos araras, é porque ainda temos ambiente para elas. Bom para elas, melhor ainda para nós, que temos uma cidade bem arborizada, com frutíferas variadas dando suporte à biodiversidade. As araras são boas indicadoras dessa diversidade. Dão grande valor social a cidade e transmitem paz, tranquilidade e alegria", afirma.

O fenômeno, diz a bióloga, aponta também para a necessidade de preservação da biodiversidade em áreas urbanas.

"Até 2030 a população urbana será 46% maior. Com isso, haverá pressão maior para exploração das áreas naturais, cada vez mais diminuídas. As áreas urbanas ganharão mais importância, e buscar equilíbrio entre desenvolvimento e manutenção da paisagem deve ser meta dos dirigentes públicos e de cada cidadão", diz a pesquisadora.

João Marcos Rosa
Escultura na Praça das Araras, em Campo Grande, presta homenagem às aves que se tornaram símbolo da cidade
Escultura na Praça das Araras, em Campo Grande, presta homenagem às aves que se tornaram símbolo da cidade

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