Folha de S. Paulo


Dois encontros marcantes com Mandela

Steven Lang é um jornalista sul-africano, baseado em Johanesburgo, que nos anos 1990 trabalhava para a South African Broadcasting Corporation (SABC) e colaborava com a BBC Brasil. Durante esse período ele acompanhou e fez reportagens sobre diversos momentos da trajetória de Nelson Mandela.

Abaixo, Lang relata duas ocasiões em que teve contato direto com o líder sul-africano, que tanto marcou a vida de seus conterrâneos. No primeiro relato, Lang testemunha o poder de memória de Mandela durante um episódio ocorrido antes das eleições de 1994.

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Foi logo depois de um daqueles horríveis massacres que ocorriam com grande frequência nos meses que precederam a primeira eleição democrática em 1994. O país se equilibrava no abismo de uma terrível guerra civil.

Deve ter sido logo após o massacre de Boipatong, ou talvez tenha sido depois de um dos terríveis momentos assustadores que vivíamos. Nelson Mandela esperava pacientemente nos estúdios de TV da SABC para gravar uma mensagem para convencer sul-africanos a não aderirem à onda de violência.

Era um momento excepcionalmente grave na história do nosso país. Ele fazia uma expressão séria enquanto uma maquiadora passava pó em seu rosto. Em seguida, enquanto esperava a equipe do estúdio se preparar para a gravação, ensaiou seu discurso novamente.

Mas ao notar um cinegrafista do estúdio, fez uma pausa. Mandela se dirigiu ao jovem surpreso e perguntou se seu pai tinha trabalhado como tradutor em um tribunal. O jovem surpreendido mal conseguia falar, mas confirmou que seu pai havia de fato sido tradutor em um tribunal.

Mas como ele sabia? Mandela se permitiu um breve sorriso. Ele então disse ao cinegrafista que este se parecia muito com seu pai, de quem lembrava como tradutor trabalhando nas cortes de Justiça da província de Cabo Oriental nos anos 1950.

A breve troca de palavras, testemunhada por menos de cinco pessoas, revelou a extraordinária memória de Mandela e sua habilidade em associar o rosto de um homem com o de seu filho, 40 anos mais tarde.

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MANDELA PRESIDENTE

Neste segundo relato, Lang relembra um encontro com Mandela logo após seu primeiro discurso como presidente da África do Sul em uma sessão plenária da Organização da Unidade Africana (OUA, substituída em 2002 pela União Africana).

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Eu estava em pé, desconfortável atrás de uma corda de veludo vermelho, em um hotel em Tunis, segurando meu gravador e microfone. Eu esperava por presidentes e primeiros-ministros africanos entrarem pelo lobby e subirem para as salas de reuniões.

Cada líder estava acompanhado por um grande grupo de oficiais bem vestidos e o inevitável contingente de seguranças. Nenhum deles falou com as dezenas de jornalistas que se esticavam por cima das cordas tentando chamar a atenção dos representantes da Organização da Unidade Africana.

Alguns acenavam com ar de importância para as câmeras, enquanto outros passavam de forma pomposa pelo cordão de isolamento.

O desfile de líderes proporcionava boas oportunidades para fotógrafos e câmeras de TV, que conseguiram ótimas imagens para suas respectivas organizações. Mas para nós, jornalistas de rádio, foi um momento de desespero.

Yasser Arafat ignorou a mídia enquanto marchava pelo lobby acompanhado de seu batalhão de assessores, que vigorosamente abriam caminho empurrando as pessoas para o lado.

Os líderes africanos tinham acabado de testemunhar Nelson Mandela dar seu primeiro discurso para uma sessão da OUA como novo presidente da África do Sul. Vários dos líderes presentes pareciam estar irritados, talvez porque tivessem sido ofuscados por um homem que tinha todos os motivos para estar de mau humor.

Depois de um longo tempo de espera, Nelson Mandela entrou pela porta da frente com um enorme sorriso e acompanhado de apenas um homem, o chefe do Departamento de Relações Exteriores da África do Sul, Rusty Evans.

Dezenas de flashes e luzes de câmeras de TV se acenderam e Mandela sorriu para o pandemônio. Ele acenou para os repórteres como se estes estivessem participando de uma festa-surpresa de aniversário.

Ele se encaminhou lentamente para o elevador quando Evans viu alguns de nós, jornalistas sul-africanos, em pé num canto. Mandela imediatamente mudou sua direção e se aproximou da gente, me dando a oportunidade de tirar o microfone e fazer perguntas sobre o discurso na OUA.

Mas ao em vez de responder, ele cumprimentou cada com um de nós com um aperto de mão, e com um enorme sorriso perguntou. "Como você está?"


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