Folha de S. Paulo


Ex-dependentes preparam presentes para receber o papa no Rio

Após visita ao Santuário de Aparecida, onde rezou missa para milhares de fiéis, o papa Francisco retorna ao Rio de Janeiro na tarde desta quarta-feira para uma inauguração simbólica de um centro de apoio a dependentes químicos.

O plano original dos organizadores do evento era que a visita do pontífice coincidisse com o início das atividades do complexo. Porém, devido a atrasos nas obras, as operações só devem começar no mês que vem, quando os primeiros pacientes poderão ser internados. Mesmo assim, a visita do papa foi mantida.

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Com capacidade inicial para 40 leitos, o Polo de Atenção à Saúde Mental (PAI) funcionará em um prédio de quatro andares dentro do Hospital São Francisco na Providência de Deus, na Tijuca, na Zona Norte da cidade. Outras 40 vagas serão abertas até o final do ano.

Segundo o frei Paulo Batista, diretor do hospital, o centro receberá inicialmente pacientes particulares ou conveniados a operadores de saúde. Ele afirmou, entretanto, que também haverá vagas para dependentes químicos atendidos por outras obras assistenciais da associação mantenedora do hospital.

"Tivemos problemas com o andamento das obras, mas mantivemos a inauguração, mesmo que simbólica, porque o papa Francisco quer conhecer um trabalho de pastoral".

Batista disse ainda que as negociações com o Sistema Único de Saúde (SUS) para o atendimento gratuito já foram iniciadas, mas ainda estão sendo discutidas.

Os recursos para construção do complexo, que foi orçado em R$ 2,5 milhões, foram bancados pela Conferência Episcopal Italiana.

O Polo terá uma estrutura para aqueles que precisem de procedimentos médicos emergenciais, especializados ou que estejam passando por uma crise aguda. A internação poderá durar até 30 dias, podendo ser prorrogada por igual período.

Ao final do tratamento ambulatorial, o paciente poderá continuar recebendo atendimento em uma das iniciativas mantidas por comunidades terapêuticas ligadas à instituição.

Uma vez inaugurado, o complexo reduzirá o déficit de leitos para tratamento de dependentes químicos no Rio de Janeiro, atualmente estimados em 600 mil.

"A rede do SUS conta hoje com apenas 20 leitos de internação para casos mais graves", diz o psiquiatra Ítalo Marsili, diretor-executivo do projeto.

PRESENTES

Durante a visita, o papa receberá uma imagem de São Francisco de Assis de 60 centímetros feita pelo artista plástico Milton Pestillo, de 57 anos, ex-dependente químico.

Outros dois ex-usuários de drogas também participaram ativamente da organização.

O marceneiro Antônio de Oliveira Vera, 43, ficou responsável por construir a cadeira do papa. Já o artista plástico Ricardo Aparecido Luciano, 32, fez uma pomba da paz para ornamentar o palco.

Todos foram tratados no Lar São Francisco de Assis na Providência de Deus, em Jaci, no interior de São Paulo. A entidade foi criada pelo frei Francisco Belotti em 1986 e hoje é mantenedora de 60 obras assistenciais - entre elas o hospital - espalhadas por São Paulo, Goiás e Rio de Janeiro, além do Haiti.

A BBC Brasil conversou com os ex-dependentes químicos. Confira abaixo como eles se livraram do vício e qual são suas expectativas para o encontro com o papa.

MILTON PESTILLO

A relação de Milton Pestillo, de 57 anos, com o álcool começou quando ainda era jovem. De gole em gole, ele conta que passou a beber várias vezes ao dia, prejudicando seu trabalho.

"Eu bebia muito. Bebia, inclusive, para parar a tremedeira (um dos efeitos do consumo excessivo de álcool). O meu vício me trouxe perdas materiais importantes, porque, bêbado, não conseguia vender minhas obras. Perdi a minha autoestima e a vontade de trabalhar", afirmou ele à BBC Brasil.

Quando sua filha nasceu, há 23 anos, disse a si mesmo que se libertaria do vício. Procurou o Lar de São Francisco, onde participou de um tratamento que durou de dois a três meses. Após esse período, passou a participar de grupos de ex-alcoolatras.

O começo foi difícil. "Foi preciso muita força de vontade. Dava aquela agonia, aquele desespero. Mas consegui reverter o vício bebendo muito suco e caldo de cana de açúcar, que, como é muito doce, acaba enganando o organismo".

Mas após cinco anos livre do álcool, teve uma recaída, prontamente superada. Hoje aposentado, Pestillo ainda se mantém longe do álcool. "Para um ex-viciado, é importante permanecer afastado da bebida."

Ex-coroinha e católico fervoroso, ele conta que estudou três anos em um seminário para seguir carreira no sacerdócio, mas desistiu da vida religiosa para se casar. Ele disse que não vê a hora de encontrar o papa. "Para mim, é uma emoção muito grande poder ter feito este presente ao Santo Padre."

RICARDO APARECIDO LUCIANO

Natural de Araraquara, Ricardo Aparecido Luciano, 32, viciou-se no crack há uma década, quando abdicou da maconha que fumava quase que diariamente para partir para drogas mais pesadas.

"Quando ainda era adolescente, fumei maconha com amigos pela primeira vez. Não demorou muito para que eu me tornasse um usuário assíduo. Decidi, então, experimentar uma droga mais pesada e me viciei no crack", conta.

Cientes dos efeitos negativos da droga, Luciano procurou ajuda e conheceu o Lar São Francisco, onde iniciou o tratamento para livrar-se do vício. Mas o período 'limpo' teve vida curta.

"Acabei voltando para Araraquara, onde conheci uma mulher, com quem vim a me casar. Juntos, nós nos afundamos nas drogas. Fumávamos todos os dias. Acabamos nos separando depois", disse. "Deixei o trabalho e fui obrigado a morar na rua. Tinha de revirar o lixo à procura de comida".

Do relacionamento, nasceu uma menina que, segundo Luciano, só não foi encaminhada à adoção pelo Conselho Tutelar porque sua mãe conseguiu a guarda da criança, hoje com seis anos. "Foi então que há dois anos decidi voltar a me tratar e, graças a Deus, estou livre do vício. Fiz isso por mim e pela minha filha, que quero ver crescer", afirmou.

A ex-mulher de Luciano morreu há poucos meses, vítima das drogas. Ele casou-se novamente e se diz emocionado de ter feito um adorno para o papa. "Sou católico praticante. Vou à missa todos os domingos. Para mim, essa visita do Papa é um presente de Deus."

ANTÔNIO DE OLIVEIRA VIEIRA

Há 20 anos, Antônio de Oliveira Vera começou a beber compulsivamente. Do álcool, foi para maconha e afundou-se logo em seguida no crack, de onde não enxergava saída até chegar ao Lar São Francisco. "Só consegui sair daquela vida porque procurei Deus", afirmou.

Ele está livre do vício há sete anos. Durante a recuperação, Vera, que já havia trabalhado como montador de móveis, aprendeu o ofício de marceneiro. Hoje, a profissão é seu ganha-pão. "Fazer a cadeira onde o papa se sentará é, certamente, um presente de Deus", afirma.


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