Folha de S. Paulo


Análise: Como as vítimas de Cleveland devem lidar com a mídia?

No fim de agosto e início de setembro de 2006, a atmosfera entre grande parte da imprensa austríaca e estrangeira era tensa e febril em Viena.

Natascha Kampusch havia acabado de conseguir sua libertação, após oito anos sequestrada e mantida dentro de um porão em uma casa no subúrbio da capital da Áustria.

A imprensa publicou fotos da jovem sendo levada a uma delegacia. Mas sua face permaneceu escondida por um cobertor. Poucos dias depois, ela divulgou um comunicado. Mas o que os jornalistas se perguntavam era: será que ela vai falar?

Sim. Duas semanas após escapar, ela deu uma longa e comovente entrevista à TV austríaca.

Desde então, Kampusch se manteve nos holofotes: participou de programas de TV, escreveu uma autobiografia que virou best-seller e aprovou um filme que contará sua história. Ela diz que falar sobre suas experiências teve um efeito terapêutico, mas também já comentou que às vezes é difícil lidar com o fato de sua vida estar sob intenso escrutínio público.

Seu caso é bem diferente da história de incesto que veio à tona em maio de 2008 em Amstetten, também na Áustria.

Na época, a tempestade midiática sobre Josef Fritzl, que prendeu sua filha Elizabeth durante 24 anos em um porão e teve sete filhos com ela, acabou sendo ainda mais intensa do que a cobertura do caso Kampusch.

Paparazzi subiam em árvores ao redor da clínica para onde Elizabeth e seus seis filhos sobreviventes foram levados; jornalistas tentavam de tudo para obter uma entrevista. Mas a família preferiu se isolar, e acredita-se que hoje eles vivam com novas identidades.

A grande imprensa, com exceção do tabloide britânico "The Sun", não publicou fotos de Elizabeth e de seus filhos. Restam apenas especulações a respeito de como eles lidam com os traumas do período em que ficaram encarcerados.

REAÇÕES

Será que essas duas reações opostas podem oferecer algum tipo de orientação às três mulheres de Cleveland --Amanda Berry, Gina DeJesus e Michelle Knight--, agora que elas retomarão suas vidas em liberdade após cerca de dez anos sequestradas?

O jornalista austríaco Christoph Feurstein, que fez a primeira entrevista com Natascha Kampusch, descreveu a experiência como "uma sensação de ressurreição". Para ele, o mais importante para as três jovens de Cleveland é que "elas aprendam a confiar novamente".

"Elas foram exploradas durante dez anos. Então, têm de aprender a confiar e vão precisar de muita ajuda. Especialistas dizem que pode levar mais dez anos até que elas retomem a vida normal."

Ele diz que Kampusch olha para o futuro. "Ela faz trabalhos sociais, sempre tem planos novos, e acho que ela está cada vez melhor. Mas as feridas duram a vida toda."

Adelheid Kastner, a psiquiatra austríaco que examinou Josef Fritzl e prestou testemunho durante seu julgamento, diz que há muito poucos casos semelhantes "para que possamos fazer generalizações" sobre como as vítimas devem lidar com sua recém-adquirada fama.

Ela afirma que não teve contato direto com Kampusch ou com Elizabeth Fritzl e seus filhos, mas acredita que seus desejos --de publicidade ou isolamento-- devem ser respeitados. "Você não posse ensinar (às vítimas) como lidar com sua própria história", diz.

ATENÇÃO

Kastner acrescenta que é legítimo buscar a atenção da imprensa, mas ressalta que isso pode significar conviver com "consequências não tão positivas". "O marketing midiático não é necessariamente a realidade que (as vítimas) buscam", diz.

Questionada pela BBC se ela tinha algum conselho para Amanda Berry, Gina DeJesus e Michelle Knight, Kastner foi direta. "Não tenho nenhum conselho. Elas devem fazer o que quiserem fazer. Elas foram mandadas por terceiros por tempo demais."


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