Folha de S. Paulo


Santa Maria: cinco vozes de uma tragédia

Uma semana após o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, sobreviventes, familiares e moradores da cidade contam suas experiências e como superam o trauma dos acontecimentos.

O incidente, que deixou pelo menos 236 mortos e mais de 70 feridos, a maioria ainda hospitalizados, é considerado a segunda maior tragédia do tipo no Brasil.

Durante a semana, foram presos os dois donos da casa noturna e dois membros da banda Gurizada Fandangueira, que tocava em uma festa universitária no local.

Confira as histórias de quem participou da festa, do resgate, do reconhecimento das vítimas e da ajuda aos familiares:

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Bernardo Bopp, estudante

O estudante de zootecnia Bernardo Bopp, de 22 anos, está reunido com sua família em Itaara, a 14 km de Santa Maria, desde que escapou do incêndio na boate Kiss. A turma de Bopp era uma das que participava da organização da festa onde o incêndio aconteceu, na madrugada de 27 de janeiro.

Bopp era um dos responsáveis pelos convites da festa e conta que viu o incêndio logo no início --ele e cerca de 15 amigos estavam entre os primeiros a deixar a casa noturna.

"Vi que (a banda) tinha acendido os foguetinhos, mas só percebi quando a banda parou de tocar. Comentei com meu colega e ele me disse 'olha lá, tá pegando fogo'. A gente tava perto de um dos corredores que levam para a saída. Fomos os primeiros. Só dois colegas nossos que não saíram. O guri morreu, a guria tá no hospital", disse à BBC Brasil.

O estudante e seus amigos ajudaram outras pessoas a saírem da boate até as 7h da manhã de domingo. Entre os mortos estavam amigos de infância de Itaara, que ele havia convidado para a festa.

"Uns dez segundos depois que eu saí, ainda saía gente caminhando. Pouco depois, eram só pessoas resgatadas pelos voluntários e bombeiros, ainda com alguns sinais de vida. Por volta de 3h da manhã eu estava ajudando a tirarem pessoas, a maioria já mortas. E aí vi os caras tirarem um dos meus amigos", relembra.

"O primo desse amigo viu de longe e quis vir pra ver se era ele mesmo, eu não deixei. A gente conversou com ele na hora. Foi tri ruim."

Segundo Bopp, diversos estudantes da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) pensam em não voltar às aulas imediatamente. Alguns, só no próximo semestre.

"Tá todo mundo bem abalado, a maioria do pessoal viajou para suas casas em outras cidades. Tem gente que está pensando em nem vir, demorar mais uma semana, ou abandonar o semestre. Esse semestre já está atrasado por causa da greve. Da minha turma morreu uma pessoa, mas teve turmas de agronomia em que morreram mais de dez, imagina."

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Alberto Tessmer, voluntário

Uma semana após a tragédia, a cidade de Santa Maria está tentando se adaptar e voltar à realidade, conta o morador Alberto Tessmer, de 35 anos, voluntário que ajudou no resgate das vítimas da boate Kiss. "(Estamos tentando) não aceitar o que aconteceu, mas sim compreender."

"É muito difícil. Apesar de ser uma cidade de quase 300 mil habitantes, todo mundo se conhece. Você sai na rua e encontra alguém falando disso; e de que mais você vai falar? Vemos pais chorando seus filhos e falando que perderam o sentido da vida. É difícil cicatrizar."

A principal dificuldade, diz ele, é o sentimento de revolta e de "coisas não esclarecidas" envolvendo o incêndio da madrugada de 27 de janeiro na Kiss.

"A cidade não entende esse jogo de culpa, de ninguém assumir responsabilidades. Por que a produção da festa não aparece? E os responsáveis pelo projeto (arquitetônico da casa noturna)? Alguém registrou o projeto, e isso não se fala."

Ele também está sentindo pessoalmente os efeitos da tragédia, como dificuldades para dormir e tratamento médico para desintoxicar o pulmão da fumaça respirada enquanto resgatava vítimas da boate.

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Joel Oliveira Dutra, promotor

O promotor Joel Dutra é um dos responsáveis pela investigação criminal sobre o incêndio na boate Kiss, mas diz que seu envolvimento com a tragédia começou antes do trabalho. "Minha entrada no caso aconteceu antes como particular, como pai. Uma das minhas filhas quase foi para a festa e o namorado dela perdeu um primo e um amigo lá."

A filha de Dutra, estudante de direito na UFSM, foi jantar com as amigas e pretendia ir à festa na casa noturna, mas decidiu voltar para casa. "Por volta de 4h da manhã, ligou uma senhora querendo falar com minha filha e se identificou como tia do namorado dela, dizendo que o filho estava numa festa em Santa Maria. Ela recebeu uma ligação de um amigo do guri e queria que minha filha tentasse achá-lo, porque ela não estava conseguindo falar com ele no celular", conta.

No início da manhã, Dutra foi até o local do incêndio enquanto a filha e o genro buscavam pelo rapaz desaparecido nos hospitais da cidade. "Cheguei lá pensando em encontrar alguma informação. Me identifiquei como promotor de justiça, os bombeiros me auxiliaram, eu coloquei uma máscara e quando entrei no local, vi aquele horror, aquela gurizada já deitada, sem vida."

Para chegar ao local onde ficava o banheiro da boate, segundo o promotor, foi preciso tomar cuidado para não pisar em corpos no chão. Quando deixou a casa noturna, ele se dirigiu ao ginásio de esportes da cidade, para onde os corpos foram levados.

"O que mais me incomodou foram os celulares das pessoas no chão tocando insistentemente. Fiquei imaginando o desespero dos pais. Consegui que minha filha levasse uma fotografia dos guris e infelizmente localizei os dois no meio. Foi difícil reconhecê-los com as fotos, porque um deles estava com o rosto escuro e o outro estava machucado no rosto e no peito."

"Acho que o promotor nunca desligou, nunca parou de trabalhar. Por mais que eu estivesse naquele primeiro momento envolvido com as pessoas, a coisa ligou no automático e eu fiquei acompanhando, liguei para minha chefia em Porto Alegre na manhã seguinte para alertá-los de que a coisa era muito séria."

Dutra conta que o clima de pesar atinge até mesmo os que visitam a cidade. "Duas funcionárias nossas que vieram de Porto Alegre contaram que estavam no shopping indo almoçar. Elas conversaram, uma contou algo engraçado para outra e riram. De repente, elas perceberam que tinha uma pessoa chorando perto delas e se sentiram mal. Elas disseram que 'por enquanto, parece que está proibido sorrir em Santa Maria'."

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Ana Alice Giaconelli, voluntária no ginásio de esportes

"Passei uma tarde trabalhando lá. Não tive como ficar mais, porque também estava ajudando uma família que perdeu uma pessoa", disse a professora de inglês e estudante de Letras Ana Alice Giaconelli, de 22 anos, à BBC Brasil.

Ela ajudou a distribuir água e alimento para as famílias que reconheciam e velavam parentes no local. "Todo mundo foi pego de surpresa, e como a maioria dos estudantes não eram de Santa Maria os pais vieram correndo, sem se preparar."

Giaconelli soube do incêndio durante a madrugada, depois de receber um telefonema do irmão, que havia passado diante da casa noturna durante a operação de resgate e contou ter visto "pelo menos 30 corpos no chão".

No Facebook, ela encontrou as primeiras fotos do local e mensagens pedindo ajuda. "Fui na página (de Facebook) da boate e comecei a ver as pessoas comentando: 'O que está acontecendo?', 'Meu filho tá lá' ou 'Meus amigos foram todos para lá'."

Foi também nas redes sociais que a professora descobriu que a Defesa civil precisava da ajuda de voluntários no ginásio de esportes local. "Primeiro pediram ajuda de profissionais da área de saúde, que era mais importante, mas quando viram que o reconhecimento dos corpos seria ali e os velórios também, que as pessoas passariam o dia ali, começaram a pedir mais pessoas."

A internet, segundo Giaconelli, é palco ainda da mobilização dos jovens da cidade durante a investigação sobre a responsabilidade pelo incêndio. "A gente pensa que se o cara da banda não tivesse usado o sinalizador, isso não teria acontecido. Podia não ter incendiado naquele dia, mas aconteceria em outro. Estão circulando nas redes sociais fotos de festas anteriores da Kiss. Em outubro ou novembro do ano passado teve uma festa mexicana e as fotos já mostravam pessoas usando esses sinalizadores", afirma.

"Também vi uma foto de umas pessoas bebendo num bar e ao lado deles tinha um balde de champanhe com um sinalizador ligado dentro. Eles faziam isso o tempo todo. Quando o dono da boate falou na televisão ou pela representação dele que isso não era usado, as pessoas começaram a lembrar e começaram a colocar fotos. Eles usavam esses sinalizadores bem perto do teto."

As homenagens às vítimas, de acordo com Giaconelli, também continuam. "As pessoas colocaram tantas flores e cartazes em frente à boate que (o memorial) já atravessou a rua e está indo para a quadra da frente."

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Maria de Fátima Fischer, psicóloga

Maria de Fátima Fischer faz parte da coordenação do serviço de atendimento psicológico às vítimas e famílias de vítimas de Santa Maria. A rede, que começou a ser criada quase que imediatamente após o incidente, visa atender cada um dos 62 municípios afetados pela tragédia somente no Rio Grande do Sul.

Segundo Fischer, as equipes se dividem em atendimento 24 horas, apoio às famílias nos rituais de despedida, acompanhamento nos hospitais, visitas domiciliares e atenção aos profissionais que se envolveram na operação. "Queremos incorportar esses serviços ao SUS. É importante que as pessoas saibam que eles não irão sumir e que elas ainda podem falar sobre isso daqui a três meses."

"Já temos 92 atendimentos da situação esperada nos primeiros dias, que são a fase mais aguda. Pessoas com sintomas de agitação, pânico, uma grande crise emocional. A cada óbito novo isso é revivido por muitas pessoas. Depois das 72 horas iniciais começa uma fase de assimilação do sofrimento agudo", conta.

"Lidei com pessoas diretamente, a madrugada tem sido muito interessante. Teve uma jovem que chegou à noite no centro de atendimento 24h, três dias depois do que aconteceu. Ela contou que uma irmã e duas amigas haviam falecido na boate e dava para ver que ela finalmente estava conseguindo falar do assunto."

Fischer diz que é possível ver sinais de recuperação na postura de enfrentamento dos cidadãos ao exigirem justiça. "Na passeata, por exemplo, havia muita dor, mas as pessoas caminhavam com esperança. É muito importante para a recuperação social que elas se apoiem", diz.

"Estava preocupada porque começamos a ver algumas manifestações isoladas de moralismo, mas quem quiser escrever e postar mensagens moralistas sobre 'corrigir comportamentos' deve saber que isso não ajuda. Não vamos corrigir a juventude. A juventude tem que bailar, se divertir e passar por toda essa fase com segurança. Vamos defender a vida e as formas coletivas de alegria dessa fase. A juventude não tem culpa do que aconteceu, ela têm que viver."

Colaborou PAULA ADAMO IDOETA


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