Folha de S. Paulo


Pesquisadores dos EUA são impedidos pelo governo de ir a evento científico

Jonathan Ernst/Reuters
O presidente americano Donald Trump
O presidente americano Donald Trump, cuja administração impediu ida dos cientistas a congresso

Centenas de cientistas do Instituto de Pesquisa Geológica dos EUA (USGS na sigla em inglês) não participaram da maior conferência de seu campo, realizada neste mês.

Geralmente, cerca de 450 pesquisadores da principal agência de recursos e riscos naturais participam da reunião anual da União Americana de Geofísica (AGU na sigla em inglês), o maior encontro mundial de cientistas da Terra, do espaço e do clima.

Mas nas semanas que antecederam a conferência neste ano o Departamento [ministério] do Interior, que supervisiona o USGS, emitiu um novo limite de frequência: no máximo 199 funcionários de todo o departamento poderiam viajar para a reunião, e os gastos não poderiam ultrapassar US$ 399 mil (cerca de R$ 1,3 milhão).

Em consequência, apenas 178 pesquisadores do instituto estiveram presentes na conferência da AGU em Nova Orleans na semana passada –uma queda de 60% em relação ao ano passado. Além disso, 30 resumos para apresentações em cartazes ou orais, que levam semanas para preparar, foram retirados por cientistas do USGS que não puderam participar.

Segundo a porta-voz A.B. Wade, o USGS não recebeu uma explicação para a mudança de política.

Uma porta-voz do Departamento do Interior disse que a decisão de limitar o número de funcionários economizou milhares de dólares dos contribuintes. Ela afirmou que o maior número de funcionários que estiveram na reunião nos últimos anos foi um exemplo do "vício em gastos" do governo Obama.

Mas um cientista do USGS que não teve aprovação para ir à AGU apenas dez dias antes da reunião disse que a redução dos frequentadores da conferência significa que o Departamento do Interior está "dizendo que não podemos fazer nosso trabalho".

"Está na descrição do meu cargo que devo realizar pesquisas e divulgar essas pesquisas", disse o cientista, que pediu para não ter seu nome citado por temor de perder o emprego. "Se eu tenho ciência legítima e tenho uma verba para participar da reunião e me dizem que não posso ir, isso é assédio."

O cientista, que trabalha na área de missão de Clima e Mudança do Uso da Terra, participou da AGU em quase todos os anos desde o final dos anos 1990. Ele ajudou a organizar eventos na conferência, foi escolhido para participar de diversas sessões e já tinha reservado passagem de avião e hotel quando lhe negaram a autorização para viajar.

Geralmente, os pesquisadores do USGS que desejam viajar para uma conferência devem fazer a requisição por meio de um banco de dados online. Se a conferência custará mais de US$ 100 mil, as autoridades do USGS apresentam os pedidos ao Departamento do Interior para aprovação.

A reunião anual da AGU é a maior conferência de geociência do ano, apresentando mais de 22 mil cientistas do mundo todo, e o USGS gastou centenas de milhares de dólares para enviar aproximadamente 450 pesquisadores nos últimos vários anos. Os participantes dizem que a conferência lhes dá a oportunidade de compartilhar sua pesquisa, reunir-se com colaboradores distantes, descobrir oportunidades de financiamento e manter-se atualizados com a ciência e as tecnologias mais avançadas em seus campos.

Christine McEntee, diretora-executiva da União Geofísica Americana, considerou "preocupante" a redução de frequência do USGS neste ano.

"Estamos preocupados com isso porque não há lugar melhor [que a AGU] para os EUA compartilharem com o mundo o conhecimento e a pesquisa estelares que têm", disse ela.

Wade comentou que o local da reunião neste ano, Nova Orleans (geralmente ela é realizada em San Francisco), pode ter aumentado o custo da participação para alguns pesquisadores; o USGS tem um grande campus em Menlo Park, na Califórnia, um curto percurso partindo de San Francisco.

Mas os números gerais de registros foram típicos, e a participação de outros órgãos federais não caiu tanto, segundo a AGU. Os participantes deste ano incluíram 252 cientistas da Administração Nacional do Oceano e Atmosfera (Noaa na sigla em inglês) –aproximadamente o mesmo número do ano passado– e 735 pesquisadores da Nasa –13% a menos que em 2016.

O limite de viagens para a conferência do USGS também parece ter afetado a frequência na reunião anual da Sociedade Geológica da América, que foi realizada em outubro em Seattle. Melissa Cummiskey, diretora de reuniões da GSA, disse que o número de pesquisadores do USGS na conferência caiu entre 40% e 45% em relação ao ano anterior. Esses pesquisadores que foram aprovados souberam apenas uma semana antes da conferência, segundo Cummiskey.

O USGS e outros órgãos do Departamento do Interior previam grandes cortes de gastos no próximo ano. Neste verão, o secretário do Interior, Ryan Zinke, disse a um comitê do Senado que pretendia dispensar cerca de 4.000 funcionários do departamento –cerca de 8% da equipe contratada em tempo integral. Ele também defendeu a proposta do presidente Donald Trump de cortar o orçamento do Interior para 2018 em mais de 13%, dizendo que "isto sim parece um orçamento equilibrado".

Sob as resoluções improvisadas que cobriram os gastos do governo desde setembro, o orçamento do USGS continuou relativamente constante.

Enquanto isso, o inspetor-geral do Departamento do Interior abriu uma investigação em outubro sobre as decisões de viagens de Zinke e o uso de dinheiro do contribuinte. Documentos obtidos por meio de pedidos de abertura de registros mostraram que Zinke pagou US$ 12.375 (R$ 40.837) por um voo fretado de quatro horas de Las Vegas a Montana e gastou mais de US$ 53 mil (R$ 174 mil) em três viagens de helicóptero neste verão.

A participação em conferências por funcionários federais está sendo analisada há muito mais tempo. Políticas mais rígidas de viagens em todo o governo foram implementadas em 2012 depois de um escândalo na Administração de Serviços Gerais. O inspetor-geral da GSA publicou um relatório severo sobre uma conferência de US$ 823 mil em Las Vegas que teve um leitor de mentes e uma festa de US$ 31.208.

Marcia McNutt, que dirigiu o USGS de 2009 a 2013, disse que o departamento defendeu a importância da participação na AGU no rastro desse escândalo e pôde enviar seu contingente normal de cientistas à reunião. Ela comentou que o presidente ainda não nomeou um diretor do USGS, e o nomeado para secretário-assistente para Água e Ciência (a autoridade do departamento que supervisiona o escritório) não foi confirmado.

"Não há ninguém para defender o USGS quando eles precisam ir a uma reunião importante como esta", disse ela.

McNutt, que é presidente da Academia Nacional de Ciências, disse que a ausência de pesquisadores do USGS na AGU representa centenas de oportunidades perdidas para cientistas do governo –uma declaração que a porta-voz do Interior chamou de "hiperbólica".

"A AGU é apenas um lugar incrivelmente excitante para as pessoas aprenderem com as outras e estarem na vanguarda", disse McNutt. "Se você não está lá, se você tiver de esperar até que todas as novidades sejam publicadas, você está na retaguarda da ciência. E todas as pessoas que não conseguiram ir estão basicamente sentadas lá na retaguarda, no escuro."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


Endereço da página: