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Cientistas temem que Trump ignore duro relatório federal sobre clima

Nicholas Kamm/AFP
Autores do relatório afirmam que milhares de estudos documentaram mudanças no clima
Autores do relatório afirmam que milhares de estudos documentaram mudanças no clima

A temperatura média dos Estados Unidos está crescendo rápida e dramaticamente desde 1980, e as décadas recentes foram as mais quentes dos últimos 15 séculos, de acordo com um relatório federal abrangente sobre a mudança do clima que está aguardando aprovação pelo governo Trump.

O texto preliminar do relatório redigido por cientistas de 13 agências do governo federal norte-americano, que ainda não foi divulgado, conclui que os norte-americanos já estão sentindo os efeitos da mudança no clima. O texto contradiz diretamente afirmações do presidente Trump e de seu governo, no sentido de que a contribuição humana para a mudança do clima não foi comprovada e que a capacidade de previsão de seus efeitos é limitada.

"As provas de mudança no clima são abundantes, do topo da atmosfera ao piso dos oceanos", afirma o texto preliminar do relatório, do qual o "New York Times" obteve uma cópia.

Os autores apontam para milhares de estudos, conduzidos por dezenas de milhares de cientistas, que documentaram mudanças do clima em terra e no ar.

Acordo de Paris

"Muitas cadeias de evidências demonstram que as atividades humanas, especialmente a emissão de gases causadores do efeito-estufa (de aprisionamento de calor), são primariamente responsáveis por mudanças recentes observadas no clima", afirma o texto.

O relatório foi completado este ano e é parte da seção científica especial da Avaliação Nacional do Clima, um estudo quadrienal criado por ordem do Congresso americano. A Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos aprovou o texto preliminar, e os autores estão aguardando permissão do governo Trump para divulgá-lo.

Katharine Hayhoe, professora de ciência política na Universidade Tecnológica do Texas e membro do grupo de cientistas que participaram do relatório, define as conclusões do estudo como um dos "mais abrangentes relatórios sobre o aspecto científico da mudança no clima" já produzidos. Outro cientista envolvido no projeto, que falou ao "New York Times" sob a condição de que seu nome não fosse revelado, se declarou preocupado com a possibilidade de que o relatório venha a ser suprimido.

A Casa Branca e a Agência de Proteção Ambiental (EPA) americana não responderam de imediato a telefonemas e e-mails solicitando comentários sobre o assunto, na noite desta segunda-feira (7).

O relatório conclui que, mesmo que os seres humanos deixassem imediatamente de causar emissões de gases do efeito-estufa, a temperatura média do planeta ainda subiria em 0,3 grau neste século, ante o nível atual. A alta projetada para a temperatura média caso as emissões continuem pode ser de até dois graus.

Uma pequena diferença na temperatura mundial pode causar efeito forte no clima. A diferença entre uma alta de temperatura de 1,5 grau e uma alta de dois graus, por exemplo, significaria ondas de calor mais longas, temporais mais intensos e desintegração mais rápida dos recifes de coral.

Entre as constatações mais significativas do estudo está a de que é possível atribuir certos efeitos climáticos extremos à mudança do clima. O ramo científico conhecido como "ciência da atribuição" vem avançando rapidamente em resposta aos riscos crescentes associados à mudança no clima.

A EPA é uma das 13 agências que devem aprovar o relatório até 18 de agosto. Seu administrador, Scott Pruitt, declarou não acreditar que o dióxido de carbono seja causa contributiva primária do aquecimento global.

"É uma situação complicada e perigosa", disse Michael Oppenheimer, professor de geociência e estudos internacionais na Universidade de Princeton. Ele não participou do estudo. "Esse é o primeiro caso em que uma análise de mudança climática de tal escopo está em debate, no governo Trump, e os cientistas estarão acompanhando com muita atenção a maneira pela qual as autoridades conduzirão o assunto."

Os cientistas dizem temer que o governo Trump altere ou suprima o relatório. Mas pessoas que contestam os dados científicos sobre a mudança do clima causada por atividade humana também estão preocupados com a possibilidade de que o texto do relatório, bem como a Avaliação Nacional do Clima, mais ampla, sejam divulgados publicamente.

A Avaliação Nacional do Clima "parece estar em piloto automático", por falta de orientação política, disse Myron Ebel, pesquisador sênior no Competitive Enterprise Institute.

O relatório afirma que avanços significativos foram realizados no estabelecimento de vínculos entre a atividade humana e eventos climáticos extremos, desde a Avaliação Nacional do Clima anterior, que foi publicada em 2014. Mas o texto aponta que incertezas importantes ainda não foram dirimidas.

O texto preliminar cita a onda de calor europeia de 2003 e o calor recorde na Austrália em 2013 como episódios específicos nos quais "indicações relativamente fortes" apontavam para influência da atividade humana em eventos climáticos extremos.

Nos Estados Unidos, apontam os autores, a onda de calor que fez o Texas ferver em 2011 representa exemplo mais complicado. Aquele ano foi o mais seco na história do Texas, e um dos estudos citados no relatório afirma que uma variação climática local e La Niña foram as causas primárias, com uma "contribuição relativamente" pequena do aquecimento global. Outro estudo concluiu que a mudança do clima torna eventos extremos 20 vezes mais prováveis no Texas.

Com base nesses e em outros estudos conflitantes, o texto preliminar do relatório federal concluiu que existe probabilidade média de que a mudança no clima tenha influenciado a onda de calor no Texas. Mas o relatório evita avaliar as possíveis conexões entre a mudança no clima e outros eventos climáticos específicos. Em geral, o relatório afirma que é "complicado" estabelecer um vínculo entre a atividade humana e recentes secas nos Estados Unidos, e que, embora muitas das secas tenham sido longa e severas, elas não deixam de ter precedentes na variação hidrológica natural do planeta.

Em termos mundiais, o relatório considera "altamente provável" que mais de metade do aumento médio da temperatura mundial de 1951 para cá esteja vinculado à atividade humana.

Nos Estados Unidos, o relatório conclui com grau "muito elevado" de confiança que o número e a intensidade do frio das noites frias tenha declinado dos anos 60 para cá, enquanto a frequência e severidade dos dias de calor aumentou. Ondas de frio extremas se tornaram menos comuns de 1980 para cá, segundo o estudo, e ondas de calor se tornaram mais frequentes.

O estudo examina todos os quadrantes dos Estados Unidos, e constata que todos eles foram afetados pela mudança do clima. A temperatura média anual dos Estados Unidos continuará a subir, os autores escrevem, e isso fará dos anos recentes de calor recorde uma ocorrência "relativamente comum" no futuro próximo. O estudo projeta alta de temperatura da ordem de 2,8 a 4,8 graus até o final do século, a depender do nível futuro das emissões de carbono.

O texto preliminar afirma que a chuva média anual nos Estados Unidos aumentou em 4% desde o começo do século 20. Partes do oeste, sudoeste e sudeste do país estão se tornando mais secas, enquanto as planícies do sul e o meio-oeste vivem maior umidade.

Os autores apontam, com grau médio de confiança, para um vínculo entre o aquecimento global causado por atividades humanas e a alta de temperatura no oeste e norte dos Estados Unidos. No sudeste, o estudo não identificou vínculo direto.

Além disso, cientistas do governo escreveram que as temperaturas de superfície, do ar e da terra no Alasca e no Ártico estão subindo em ritmo alarmantemente rápido –duas vezes superior à média mundial.

"É muito provável que o ritmo acelerado de aquecimento do Ártico tenha consequências significativas para os Estados Unidos, devido à aceleração no derretimento das camadas de gelo em terra e no oceano, o que inclui alta no nível do mar que ameaça nossas comunidades costeiras".

O estudo afirma que a atividade humana é diretamente responsável por isso.

O estudo não oferece recomendações de políticas públicas, mas afirma que estabilizar a alta média da temperatura mundial em dois graus centígrados –marco que os cientistas descrevem como a cerca para além da qual a mudança se torna catastrófica– requereria reduzir substancialmente o volume mundial de dióxido de carbono.

Quase 200 países concordaram, nos termos do Acordo de Paris sobre o clima, em limitar ou reduzir suas emissões associadas à queima de combustíveis fósseis. Se essas promessas forem cumpridas, afirma o relatório federal americano, isso representará um passo crucial para manter o aquecimento global em limites administráveis.

Trump anunciou este ano que os Estados Unidos abandonariam o Acordo de Paris, afirmando que ele prejudica o país.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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