Folha de S. Paulo


Novas hidrelétricas na Amazônia podem prejudicar clima e ecossistemas

Se forem em frente os atuais planos de construir centenas de hidrelétricas na Amazônia nas próximas décadas, o efeito dominó sobre todas as regiões banhadas pelo Amazonas e seus afluentes será imenso: muito menos nutrientes para os peixes e a floresta, um litoral menos produtivo e possíveis alterações climáticas que alcançariam até a América do Norte.

Esse prognóstico nada animador vem da primeira análise integrada do impacto das usinas no maior rio do mundo, conduzida por uma equipe internacional de pesquisadores e publicada na revista científica "Nature".

O grupo, que inclui cientistas do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), da Universidade Federal do Amazonas e da Universidade do Texas em Austin (EUA), formulou um índice de vulnerabilidade dos rios amazônicos diante das obras atuais e futuras e concluiu que dois importantes afluentes que atravessam o território brasileiro, o Madeira e o Tapajós, estão entre os que mais sofrerão (e, aliás, já estão sofrendo) com a febre das novas hidrelétricas.

Para o coordenador do estudo, o geólogo argentino Edgardo Latrubesse, da Universidade do Texas, não se trata de impedir a geração de energia na região, mas de levar em conta os impactos dela e pensar em modelos alternativos para a Amazônia.

"O plano de energia tem de ser um componente a mais do manejo integrado da bacia, não algo imposto de cima, que obriga todo mundo a correr atrás dos problemas gerados por essa imposição", diz Latrubesse, que trabalhou no Brasil durante quase duas décadas e é casado com uma brasileira. "Não dá para destruir o maior patrimônio fluvial do mundo de uma vez só, sem planejamento."

VULNERÁVEIS

A medida criada pelos pesquisadores, batizada com a sigla Devi (em inglês, "índice de vulnerabilidade ambiental a represas"), leva em conta três fatores. O primeiro tem a ver com a fragilidade de cada rio a mudanças no uso do solo em seu entorno (desmatamento, por exemplo), bem como o aumento da erosão e da chegada de poluentes à água. O segundo considera coisas como a quantidade de sedimentos normalmente carregados por certo rio, enquanto o terceiro leva em conta a proporção do curso do rio a ser afetada por uma nova usina.

Levando esses pontos em consideração, a área do Madeira é classificada como a mais vulnerável não só pela construção de duas hidrelétricas de grande porte (as de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia) nos últimos anos, mas também pelos projetos de usinas antes de o rio chegar ao Brasil, do lado da Bolívia, rumo aos Andes.

Esse detalhe é importante porque a bacia do Madeira recebe as águas ricas em sedimentos e nutrientes vindas do território andino e as passa adiante. As grandes usinas, porém, funcionam como um filtro, retendo esses sedimentos –observações de satélite analisadas pela equipe mostram, por exemplo, que a construção de Santo Antônio e de Jirau diminuiu em 20% a concentração de sedimentos suspensos na água do Madeira. O efeito deverá ser ainda maior com a multiplicação de usinas rio acima.

"O Brasil andou dando um tiro no próprio pé nesse sentido, porque incentivou os países andinos vizinhos a construir hidrelétricas para abastecer o que se imaginava que seria uma grande demanda de energia do lado brasileiro. Com a crise, essas previsões mudaram totalmente", conta Latrubesse.

No caso do rio Tapajós, o principal temor está ligado ao grande número de empreendimentos hidrelétricos (90 planejados mais 28 já em funcionamento), bem como a fatores como a falta de áreas protegidas nas margens do rio e a ocupação humana já relativamente intensa na região.

Alterações de grande porte no fluxo da água e dos sedimentos pela bacia amazônica inevitavelmente vão influenciar o que acontece no oceano Atlântico quando o Amazonas deságua nele. Podem acontecer efeitos negativos nos maiores manguezais ainda intactos na América do Sul, que ficam justamente na costa amazônica.

"Além disso, há estudos indicando que a pluma de sedimentos trazidos pelo Amazonas regula a temperatura de superfície do oceano na região e, com isso, influencia as chuvas no Caribe, na América Central e no sul dos EUA. O problema é global", resume o geólogo.

SOLUCIONÁTICA

O estudo não se limita a profetizar a catástrofe iminente, porém. Os pesquisadores propõem que só uma gestão integrada e transnacional dos rios amazônicos será capaz de evitar o mau uso desses recursos.

Para isso, o órgão ideal seria a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, que já reúne os países cujo território integra o bioma. Um painel formado por cientistas de todas essas nações poderia fornecer recomendações sobre a maneira mais racional de produzir energia, com a ajuda dos rios ou por outras fontes renováveis, como a solar e a eólica.

"Não é conversa de ecochato, é questão de fazer um plano decente, porque os das hidrelétricas que querem construir hoje ainda são os dos anos 1960 e 1970, quando a tecnologia era outra e se sabia muito pouco sobre o funcionamento da Amazônia. Os cientistas precisam entrar mais nessa discussão, e é o que estamos tentando fazer", diz o geólogo.

Nacho Doce/Reuters
Vista aérea do rio Tapajós, no Parque Nacional da Amazônia, em Itaituba, no Pará
Vista aérea do rio Tapajós, no Parque Nacional da Amazônia, em Itaituba, no Pará

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