Folha de S. Paulo


Igreja Católica orientará fiéis sobre cuidados com o ambiente pela 1ª vez

Tony Gentile/Reuters
O papa Francisco chega para sua audiência semanal na praça São Pedro, no Vaticano, na manhquarta-feira (3)
Papa Francisco chega na praça São Pedro, no Vaticano, para sua audiência semanal na quarta-feira (3)

Tem quem diga que religião e ciência não conversam entre si. Mas o papa Francisco não pensa assim.

O líder católico está prestes a divulgar a primeira encíclica ambiental (espécie de carta de recomendações) da história da Igreja.

O documento, com foco em mudança climática, tem o papel de orientar os fiéis sobre como se posicionar à luz da doutrina católica a respeito de questões como o aquecimento global. Ele será distribuído nas próximas semanas aos milhares de bispos e padres ao redor do globo e dirigido à comunidade de mais de um bilhão de católicos.

Segundo porta-vozes do Vaticano, é esperado que o papa ressalte o papel do povo cristão na preservação da saúde da Terra, numa visão de que o homem é o guardião da criação de Deus e tem a obrigação de cuidar dela. A ideia é mobilizar os fiéis para o modo como a mudança climática afeta as regiões e populações mais vulneráveis.

É mais um passo fora da curva partindo de um papa que já interferiu na política externa entre EUA e Cuba, reconheceu o Estado palestino e atacou a desigualdade provocada pelo capitalismo. "Ele está emulando São Francisco de Assis," compara Eduardo Cruz, professor de teologia da PUC-SP, em referência ao santo que, além de protetor dos pobres, também é patrono da ecologia.

Ele lembra que não é a primeira vez que um papa se pronuncia sobre questões sociais. O maior marco foi o "Rerum Novarum" (em português, "Das Coisas Novas"), encíclica escrita em 1891 pelo papa Leão 13, que apoiava os direitos trabalhistas no auge da Revolução Industrial. A publicação é tida como estopim da chamada doutrina social da Igreja, e teve efeitos até para o campo do direito trabalhista.

A encíclica "Humani Generis", de 1950, também se destacou por comentar sobre a teoria da evolução. O papa Pio 12, que a redigiu, não se furtava a fazer manifestações específicas sobre ciência e tecnologia. O tema foi abordado também por João Paulo 2º, outro papa cujas encíclicas sobre trabalhismo chamam atenção.

"Esperamos que a encíclica a ser publicada tenha um impacto tão poderoso que se torne o Rerum Novarum do século 21," empolga-se Sérgio Leitão, diretor de políticas públicas do Greenpeace. "Tomara que seja um choque no imobilismo dos governos em dividir a conta da redução da emissão de gases danosos".

O papa tem mesmo, com o documento, a intenção de ter influência direta na discussão política do assunto. A COP 21, cúpula de mudança climática da ONU que será o ponto culminante de duas décadas de negociações entre chefes de Estado, ocorre no final do ano em Paris.

"A iniciativa histórica do papa deve servir de incentivo a outros líderes, além do povo católico," diz Carlos Nomoto, secretário-geral da WWF Brasil. "A missão da harmonia do homem com a natureza atrai todo tipo de pessoa."

FIÉIS E INSTITUIÇÃO

A impressão de que a comunidade cristã é conservadora quanto a questões científicas é corroborada por um estudo desenvolvido pelo biólogo Josh Rosenau, do Centro Nacional de Estudos Científicos dos Estados Unidos. Ele mostra que católicos estão atrás de judeus, muçulmanos e protestantes na taxa de apoio a regulações para frear a mudança climática.

O bispo dom Guilherme Werlang, presidente da comissão para o Serviço da Caridade da Justiça e da Paz da CNBB, tenta desfazer a confusão entre a opinião dos fiéis e posicionamentos oficiais das entidades católicas.
"Percebemos que embora muitos fiéis católicos não creiam no aquecimento global como consequência da ação do homem, a Igreja enquanto instituição tem se preocupado muito com a questão e procura ajudar na conscientização de todos."

Mas a discussão de temas científicos pela Igreja não perdeu seu fator de surpresa. Para o professor Eduardo Cruz, ela tem que ser dissipada. "Líderes católicos geralmente são contra ideias anticlericais, mas na verdade sempre foram mais favoráveis à tecnologia que suspeitos."

"Alguns líderes radicais são inseguros em relação à ciência, porque acham que é contra a religião," destaca Tércio Ambrizzi, coordenador do Núcleo de Pesquisa de Mudanças Climáticas da USP. "Mas temos que entender que a fé explica o que a ciência não alcança, e as duas hoje caminham mais lado a lado".


Endereço da página:

Links no texto: