Folha de S. Paulo


Com aquecimento global, ursos têm fartura de comida

Micheal Kirby Smith/The New York Times
Ursa com filhotes, ao serem observados por cientistas canadenses
Ursa com filhotes, ao serem observados por cientistas canadenses

O gelo na costa oeste da baía de Hudson sempre derrete no verão, obrigando os ursos polares a nadarem em busca de terra firme.

A imagem de ursos desamparados em blocos de gelo vagando no mar tornou-se um símbolo dos perigos do aquecimento global.

Afinal de contas, o planeta cada vez mais quente significa menos cobertura de gelo no oceano Ártico, deixando os ursos com menos tempo e menos gelo para caçar focas, que são essenciais para sua sobrevivência.
No entanto, eles descobriram uma nova opção no cardápio local: os gansos-das-neves.

Como o gelo está derretendo mais cedo, os ursos têm antecipado sua chegada à costa e se beneficiado disso. Em um estranho efeito colateral da mudança climática, os ursos agora chegam aqui durante uma grande concentração de gansos-das-neves para procriar no verão, antes de os filhotes nascerem e emplumarem.

E com 75 mil pares de gansos-das-neves na península do cabo Churchill, resultado de uma contínua explosão populacional dessas aves, há uma nova e abundante fonte de alimentos para os ursos.

Michael Kirby Smith/The New York Times
Bloco de gelo em derretimento na costa do Canadá
Bloco de gelo em derretimento. Aquecimento global fez com que os ursos caçassem gansos e não focas

O que é bom para os ursos, porém, é devastador para a vegetação e a paisagem, pois os gansos transformaram grandes extensões de tundra em um lamaçal estéril. Além disso, não se sabe se os ursos continuarão tendo alimentação garantida por muito tempo.

O fato é que esse destino turístico para ver ursos polares no outono se tornou objeto de estudos sobre a mudança climática, em uma mistura de efeitos dominó, intercâmbios e ramificações.

"O sistema é bem mais complexo do que se imaginava", disse Robert H. Rockwell, que dirige um projeto conjunto com o Museu Americano de História Natural que há décadas monitora o meio ambiente local.

Rockwell, 68, faz a contagem de gansos na área em todos os verões desde 1969. Naquela época, ele e sua equipe observaram a população de gansos-das-neves se expandir a ponto de colocar em risco seu próprio local de reprodução.

O número de gansos-das-neves que mora e migra na faixa de revoada central do continente explodiu de 1,5 milhão nos anos 1960 para aproximadamente 15 milhões.

Para Rockwell, um dos motivos para o aumento tem origem nos charcos costeiros na Louisiana e no Texas, onde os gansos passam o inverno se alimentando de espartina, uma planta herbácea comum em mangues e brejos de água salobra (capim-marinho).

Na primavera eles migram para o norte para se reproduzir e cuidar dos filhotes no charco e na tundra da baía de Hudson.

Segundo Rockwell, a população de gansos tinha tamanho limitado devido à escassez de alimentos no sul dos EUA. Depois que muitos charcos foram drenados na região, "os gansos devem ter lembrado de que havia algo verde mais para o norte, ou seja, as pradarias de arrozais", cogita ele.

Após encontrar os arrozais mais ao norte na Louisiana, os gansos continuaram ampliando seu alcance no inverno e descobriram os campos agrícolas no meio-oeste americano. "Graças a isso, uma espécie que outrora era limitada por seu habitat no inverno agora tem uma fonte infinita de alimentos", explicou Rockwell.

Perto da costa da baía de Hudson, em junho, após uma longa caminhada sob chuva em meio a brejos, lamaçais, regatos e bosques de salgueiros, o pesquisador inspecionou os danos causados pelos gansos: hectares de terreno lamacento e estéril sem qualquer vegetação. Eles comem as plantas e as arrancam pelas raízes.

No entanto, além de comer, os gansos são comidos. Muitos animais, incluindo raposas-do-ártico, grous canadenses, gaivotas e ursos polares, adoram os ovos e mais ainda os filhotes de gansos.

A visão convencional é que os ursos polares passam fome no verão devido à insuficiência de alimentos em terra. Mas os gansos-das-neves podem ter alterado esse quadro ao menos aqui.

A perda de um ganso ou de um ninho pode parecer irrelevante, mas os ursos são glutões. Um deles comeu cerca de 1.200 ovos –nesse caso, de patos-bravos marinhos– em quatro dias. Ele disse que um colega calculara que a ingestão de quatro ovos representava 825 calorias, ou 1,5 Big Mac.

Steven C. Amstrup, cientista-chefe do grupo Polar Bears International, diz não duvidar de que ursos comam gansos, mas questiona até que ponto esse fato é importante. Ele teme que essas descobertas sejam erroneamente interpretadas por leigos como um sinal de que os ursos polares estão a salvo da extinção.

"O que eles descobriram", disse ele a respeito do trabalho de Rockwell, "é que alguns ursos comem ovos de ganso e até gansos. O importante é saber quantos ursos fazem isso e qual é o impacto."

E acrescentou: "É possível que alguns ursos compensem suas carências nutricionais com ovos de ganso, porém não é razoável supor que isso salve definitivamente os ursos polares".

Além disso, diz ele, a preocupação com os ursos é em longo prazo. "Não há provas de que as atuais populações de ursos possam ser sustentáveis", concluiu Amstrup.


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