Folha de S. Paulo


Inundações no Reino Unido trazem à tona pistas sobre humanos e mudanças climáticas

Existe aqui um poema sobre o reino submerso de Cantre'r Gwaelod, engolido pelo mar. Diz a lenda que, em noites silenciosas, é possível ouvir os sinos da igreja repicando.

Quando o mar engoliu parte do litoral do Reino Unido, neste ano, e então o cuspiu de volta, deixou uma densa floresta de tocos de árvores pré-históricas mais exposta que nunca, possibilitando um vislumbre da Atlântida galesa.

A floresta submersa de Borth não era desconhecida. Inundada há 5.000 anos, quando o nível do mar subiu após a última era do gelo, a floresta sempre esteve ali, sumindo e reaparecendo com as marés. Mas as enchentes e tempestades que fustigaram o Reino Unido no início do ano mudaram radicalmente o modo como arqueólogos interpretam a paisagem. Um canal de água salgada, revelado pela primeira vez graças à erosão, proporcionou uma riqueza de pistas sobre onde a vida humana pode ter se concentrado e onde ainda é possível encontrar seus resquícios. "As enchentes abriram nossos olhos para o que está aí fora", comentou o geoarqueólogo Martin Bates, da University of Wales Trinity St. David.

Olhando para os tocos fantasmagóricos que se erguem da areia em Borth, Bates disse que é como se a natureza estivesse ensinando uma lição. As chuvas recentes, aliadas ao aquecimento global, possibilitaram o surgimento de um laboratório para o estudo de como os humanos lidaram com mudanças climáticas catastróficas no passado.

Em vários pontos do Reino Unido, dois invernos excepcionais deixaram algumas descobertas igualmente excepcionais -desde bombas não detonadas da guerra e navios naufragados da era vitoriana até descobertas arqueológicas de quase 1 milhão de anos. De acordo com o serviço meteorológico, o inverno de 2013 foi o mais chuvoso do qual se tem registro.

Nicholas Ashton, do Museu Britânico, organiza "excursões para a recuperação de fósseis" em que convida civis para trazerem potenciais achados arqueológicos. Um homem apareceu com uma machadinha e uma presa de hipopótamo de 15 centímetros, ambas encontradas localmente e ambas com mais de meio milhão de anos de idade. Ashton explicou que a contribuição de civis pode fazer diferença, porque aquilo que o mar traz à tona, ele tende a sugar de volta quase imediatamente.

Em maio de 2013, pouco após a primeira série de tempestades fortes, Ashton convocou Martin Bates, seu velho amigo da universidade, para trabalhar na costa da Inglaterra, em Norfolk. A praia perto de Happisburgh, sítio arqueológico conhecido havia muito tempo, tinha sofrido forte erosão. Ashton queria uma sondagem geofísica para mapear quaisquer canais ou rios que possivelmente existissem sob cerca de nove metros de sedimentos.
Ele calculou que alguns desses canais poderiam conter evidências de humanos primitivos, porque as fontes de água doce teriam sido pontos de concentração de humanos.

Na segunda visita que fizeram ao sítio, Bates observou alguns pontos acidentados. As saliências tinham uma aparência que lhe era familiar. Ele disse a Ashton: "São exatamente como as pegadas humanas em Borth". As pegadas de humanos e animais em Borth tinham sido identificadas como tendo sido feitas cerca de 6.000 anos atrás. O sítio em Happisburgh tinha 900 mil anos de idade, uma época em que mamutes e hipopótamos ainda vagavam por essa região. Nunca tinham sido encontrados ossos ou pegadas humanas tão antigas no Reino Unido.

Foi o início de uma corrida contra o tempo. A cada dia as marés apagavam um pouco mais a forma das pegadas. Uma equipe da Universidade de York chegou, fazendo 150 fotos digitais e criando um modelo tridimensional. Quando outra equipe foi fazer um estudo a laser, já era tarde demais: as pegadas mal estavam visíveis.

Em pânico, os cientistas ergueram do sítio um bloco de sedimento de 60 quilos com uma pegada tênue e o levaram para análise. Antes de o mês terminar, todos os resquícios das outras pegadas tinham desaparecido. Ashton sabia que os pesquisadores estavam lidando com algo "extraordinário". Seus estudos mostraram que as pegadas eram as mais antigas conhecidas fora da África.

Bates disse que, durante a última era do gelo, há 20 mil anos, o nível do mar em Borth era 120 metros mais baixo do que é hoje. Há cerca de 10 mil anos, a temperatura subiu nitidamente, mas o mar continuou cerca de 40 metros mais baixo por outros 3.000 anos, dando tempo de florestas crescerem e de humanos recolonizarem a área. Quando o nível do mar subiu, a elevação foi traumática para a população, extinguindo assentamentos e a floresta de Borth. De acordo com Bates, os humanos da época foram refugiados pré-históricos das mudanças climáticas.

Bates está convencido de que histórias como a de Cantre'r Gwaelod tiveram origem nesse período. "Foi um evento traumático, e as pessoas o converteram em história", disse Geral Morgan, historiador. Agora, a floresta voltou a fazer parte das lendas locais. A história de Cantre'r Gwaelod vem sendo encenada na praia, segundo Morgan e sua mulher, Enid. Alguém pergunta se eles alguma vez ouviram os sinos. Enid sorri. "Conheço alguém que ouviu."


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