Folha de S. Paulo


Após confrontos no Rio, Polícia Civil abre inquérito para apurar possíveis abusos da PM

Seria mais uma noite de protestos e confronto entre manifestantes e a Polícia Militar no Rio. Mas o desfecho desta quarta-feira (14) surpreendeu qualquer previsão.

A noite teve quatro momentos em que a polícia utilizou bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e tiros de bala de borracha para dispersar os manifestantes.

O primeiro ocorreu nas proximidades do Palácio Guanabara, sede do governo do Estado do Rio. Os três últimos na porta da 9ª DP (Largo do Machado). Uma das bombas de gás lacrimogêneo lançada pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar atingiu a porta de vidro da delegacia que ficou completamente destruída. O chão da DP ficou coberto pelo vidro estilhaçado e o interior do prédio, tomado pela fumaça lacrimogênea.

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A noite terminou com a abertura de inquérito por parte da Polícia Civil para apurar possíveis excessos da ação da Polícia Militar na frente da delegacia. Vinte e nove pessoas foram detidas --todas elas liberadas mais tarde, dois policiais feridos e quase uma dezena de manifestantes feridos.

A noite ficará marcada pelos manifestantes como "o dia em que a Core [Coordenadoria de Operações Especiais, da Polícia Civil] expulsou o Choque". A Core é a tropa de elite da Polícia Civil do Rio. Depois de a porta da delegacia ter sido estilhaçada, a unidade foi chamada para tentar resolver a situação. Os agentes da Polícia Civil chegaram armados com fuzis e deixaram claro que foram ali para "proteger a delegacia".

Como o local havia sido atingido pelo armamento da Polícia Militar, logo os manifestantes usaram a situação a seu favor. "Ei, Core, vem prender o Choque", gritavam, enquanto os seis carros pretos com pintura fosca e giroscópio azul estacionavam próximos à delegacia.

O primeiro confronto aconteceu cedo, às 19h50. Manifestantes convocaram protesto para a frente do Palácio Guanabara. A concentração fora marcada para a Praça São Salvador, reduto boêmio do bairro das Laranjeiras, que fica a três quadras do palácio. Logo no início, uma confusão de menor gravidade. A polícia deteve um manifestante que pichava um muro.

PRIMEIRO CONFRONTO

Até então, o ato, que reunia 200 pessoas, não se diferenciava dos últimos na capital Fluminense. Policiais do chamado Grupamento de Policiamento de Proximidade de Multidões, criado no último dia 25 justamente em razão das manifestações, circulavam entre os manifestantes, revistando mochilas. A principal característica da unidade é a identificação dos policiais por meio de códigos alfa numéricos no quepe e na farda.

À frente do grupo está o tenente-coronel Mauro Andrade. Conhecido por alguns como o "coronel gente boa", Andrade tem experiência e jogo de cintura para lidar com os manifestantes. Ele conversa com eles e, sob seu comando, a polícia retarda o confronto o quanto for possível.

Dessa vez, no entanto, outros grupamentos da polícia se posicionaram de uma forma que favoreceu ao conflito. Policiais equipados com escudos e posicionados lado a lado fecharam os acessos ao Palácio Laranjeiras. A primeira barreira encontrada pelos manifestantes foi na Rua Paissandu, que vai até a frente do prédio.

Os presentes deram a volta no quarteirão e encontraram a uma distância de cerca de 20 metros do palácio um cordão de isolamento parecido. Cruzando de ponta a ponta da avenida Pinheiro Machado, que passa em frente ao palácio, policiais posicionados com escudos impediam que os manifestantes chegassem ao local.

Manifestantes e policiais ficaram frente a frente, a pouco metros de distância uns dos outros. Nessa hora ocorreu o primeiro confronto. O tráfego na rua estava aberto. Carros passavam no meio dos manifestantes.

Um carro que transportaria uma grávida à bordo tentava atravessar o bloqueio. Uma manifestante intercedeu junto à polícia e conseguiu a liberação da passagem. Quando a policia abriu caminho, outros manifestantes tentaram cruzar o bloqueio. Houve bate boca e um PM tentou deter a mulher, levando-a para o outro lado da barreira.

Outros manifestantes entraram na confusão e um policial do Choque equipado com capacete, roupa reforçada no tórax, ombros, peito, braços e pernas, desferiu golpes de cassete no grupo que revidou com pedradas. Dois policiais foram atingidos por pedras.

A PM então reagiu de forma intensa, disparando bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e tiros de balas de borracha para todos os lados. Manifestantes correram na direção oposta.

Jornalistas e socorristas voluntários ficaram no fogo cruzado, sem rota de fuga disponível. Uma bomba de efeito moral estourou a cinco metros do grupo, que tentava evitar ser atingido se posicionado próximo a policiais fardados que circulavam no meio do protesto e foram pegos de surpresa quando o confronto começou. Um socorrista teve o tímpano perfurado por conta de uma bomba de efeito moral.

A ação intensa da polícia, que jogou mais de dez bombas na direção dos manifestantes, provocou uma dispersão rápida. Formado em sua maioria de estudantes, o grupo fugiu deixando um rastro de depredação. Pelo menos uma agência bancária do Banco do Brasil e do Santander, um orelhão, latas de lixo e um ponto de ônibus foram depredados.

Duas viaturas do Choque, um caveirão (blindado da polícia) e o chamado Brucutu, que é o caminhão que lança jatos d"água, saíram à caça dos manifestantes. Nesse período, 29 foram detidos e encaminhados para a 9ª DP.

Os manifestantes, que aquela altura haviam se dispersado e se reagrupado na praça do Largo do Machado, decidiram seguir para a 9ª DP em apoio aos presos.

PORTA DESTRUÍDA

Foi na porta da DP que o ato tomou contornos tragicômicos, com a PM estilhaçando a porta da delegacia. Cerca de 100 manifestantes aguardavam notícias, trazidas por advogados voluntários, sobre os detidos.

Por volta das 22hs, uma bomba do tipo "cabeção de nego", típica das festas de São João, estourou dentro de uma viatura da Polícia Civil que estava estacionada na porta da delegacia. O estouro encheu o carro de fumaça e fez um buraco no estofado. Manifestantes acusam um infiltrado. A PM no local afirmou que foram os manifestantes.

O conflito teve início quando os manifestantes tentaram liberar um homem, detido numa operação que não tinha qualquer ligação com as manifestações. O Batalhão de Choque, do outro lado da rua disparou diversas bombas na direção do tumulto. Tiros de balas de borracha e mais bombas também foram disparadas por outros PMs posicionados em outro ponto da rua.

Uma bomba de gás atingiu a porta de vidro da DP, que foi reduzida a estilhaços. A Core chegou e os manifestantes começaram a provocar o Choque. Um grupo se posicionou em frente aos policiais e fez flexões em sinal de deboche. Outros cantavam a música infantil "marcha soldado". Outros ainda preferiam xingamentos e insultos. "Fascista, assassino, covarde", gritavam os manifestantes para os policiais, que pouco a pouco entravam nas viaturas e deixavam o local.

A Core se afastou. O Choque respondeu as provocações verbais com mais bombas e balas de borracha. Alguns manifestantes revidaram com pedras. Outros apenas tentavam se esconder. Policiais usaram variado arsenal de balas de borracha. Surpreso, um manifestante mostrou à Folha uma bala de borracha do tamanho de um nariz de palhaço. O projétil tinha o formato de uma esfera preta e oca.

Um terceiro confronto com o mesmo motivo e no mesmo lugar ocorreu minutos mais adiante. Inspetores da Polícia Civil já tinham passado alguns minutos sob o efeito do gás lacrimogêneo.
A delegacia virou refúgio para os manifestantes. No interior da DP uma inspetora tentava colocar ordem na casa. Socorristas davam atendimento no chão do local.

O delegado da Coordenação das Delegacias da Capital, Ricardo Dominguez, ordenou que quatro policiais do Choque ficassem posicionados em frente à DP para evitar que seus colegas voltassem a atirar bombas em direção à DP e determinou que o restante se retirasse.

"Tudo o que se passou aqui será investigado. A Polícia Civil abrirá um inquérito para apurar possíveis abusos da Polícia Militar nessa ação. Iremos intimar o comandante dessa operação para prestar esclarecimentos", disse Dominguez.

Sobre a chamada do Core, o delegado afirmou que a ideia inicial era que a unidade substituísse o Choque. "Entendemos que o que estava causando a confusão era a presença do Choque aqui. Por isso mandamos o Core para ver se os ânimos se acalmavam".

Às 23h25, os 29 manifestantes já haviam sido liberados e Batalhão de Choque deixado a porta da delegacia. Alguns manifestantes decidiram ainda voltar para a Câmara dos Vereadores, onde um grupo dá apoio aos nove manifestantes que ocupam o interior do prédio desde sexta-feira passada.


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