Folha de S. Paulo


Análise: Globo suspende novela para levar melodrama à tela, sem comerciais

O horário nobre da Rede Globo, cada vez menos sagrado, caiu novamente ontem, agora para permitir a transmissão ao vivo --e sem qualquer intervalo comercial-- de uma longa encenação da Paixão de Cristo.

O diretor de teatro e da própria Globo Ulysses Cruz prometia levar Shakespeare à avenida Atlântica, levar tragédia. Mas o que se viu foi o melodrama costumeiro, nem tanto de Eduardo Garrido, autor português da versão teatral mais popular no Brasil, mas das próprias telenovelas que haviam aberto caminho para a Paixão.

Veja o especial O papa no Brasil
Participa da Jornada? Envie foto ou vídeo
Veja como foi a Via Sacra
Paes admite que houve falha do poder público na segurança do papa
Cerca de 200 mil pessoas assistem à missa em Aparecida

Desde a primeira "estação" ou cena, com o ator global Eriberto Leão narrando a condenação de Jesus Cristo, até a 14ª, com Murilo Rosa interpretando arrebatadamente o sepultamento, o elenco e a representação não se distanciaram muito da teledramaturgia do horário. Não faltou nem a animadora Ana Maria Braga, na sequência de esforçadas celebridades.

Ulysses Cruz tentou escapar da armadilha, seguidamente, contrastando em cada nova estação a participação da celebridade --que tinha sempre seu nome registrado na tela-- com a de um desconhecido. Funcionou de início, permitindo vincular as palavras representados pelos atores com a realidade expressa pelos amadores, bem mais convincentes.

Mas a fórmula foi se desgastando aos poucos --e a única outra rede aberta que transmitia a encenação, a Bandeirantes, acabou por desistir antes do final da procissão dramática.

Como avisou desde logo o monsenhor André Sampaio, representante católico que atuou como comentarista global, foi um espetáculo desenvolvido a partir da Idade Média. O alerta era para a paciência que seria necessária, para os telespectadores, diante da morosidade.

Nelson Almeida/AFP
Encenação da Via Sacra na avenida Atlântica, na praia de Copacabana, que foi transmitida na íntegra pela Rede Globo
Encenação da Via Sacra na avenida Atlântica, na praia de Copacabana, que foi transmitida na íntegra pela Rede Globo

Mas servia também para a primeira estação, que ecoou, na voz de Leão: "Pilatos disse aos judeus: 'Eis o vosso rei!'. Mas eles clamavam: 'Fora! Crucifica-o!". A exemplo do que acontece com a Paixão nos palcos, trechos assim soam controversos para ouvidos não católicos.

Ao longo de mais de uma hora de transmissão da Globo, nada passou por controverso. Até a defesa alusiva da virgindade, feita por dois namorados, acabou recebendo aprovação ao vivo, por supostamente mostrar como a encenação de Ulysses Cruz permitia à Igreja Católica "dialogar com o jovem".

Espetáculos medievais como a Paixão de Cristo, entre outras procissões dramáticas do período, se assumiam como teatro catequético, como doutrinamento --em suma, propaganda. Ontem, da parte da igreja, o próprio papa assumiu, encerrando a apresentação com a defesa da "nova evangelização". Faltou assumir, porém, da parte da transmissão global.

Enquanto isso, o coletivo de televisão pela internet Mídia Ninja cobria com seus smartphones, quase sozinho, em sinal 3G, o retorno dos protestos violentos a São Paulo e também ao Rio.

Mais atento do que a própria rede, o G1, portal de notícias da Globo, passou a retransmitir o sinal dos repórteres Ninja, com a notícia, não a propaganda.


Endereço da página:

Links no texto: