Folha de S. Paulo


JERONIMO MOSCARDO

Saudades do Carnaval

Se o Brasil fosse repentinamente varrido do planeta por um acidente nuclear, qual teria sido sua maior contribuição para a humanidade?

Um renomado intelectual romeno, Caius Traian Dragomir, tentou responder a essa indagação em uma tese inscrita em concurso cujo prêmio principal consistia numa viagem ao Rio de Janeiro durante o Carnaval de 2000.
A fim de aquilatar a participação do Brasil na história mundial, o autor partiu de um panteão que incluía personalidades como Santos Dumont, Machado de Assis, Rui Barbosa e Guimarães Rosa.

Moveu um estudo amplo acerca de cada um deles, comparando-os a seus equivalentes em outros países e outras culturas.

Ao final concluiu que a maior contribuição do Brasil ao mundo situa-se no campo da música, sendo Heitor Villa-Lobos o nome exponencial, a personalidade que encarna a criatividade brasileira no âmbito da cultura mundial.
Proclamou, finalmente, que as "Bachianas Brasileiras" são a música mais sublime que já escutou.

A intuição do intelectual europeu nos oferece um certo alento. Na verdade, no momento em que vivemos um apagão na elite brasileira, valeria revisitarmos o projeto cultural do país não só em sua expressão musical, mas sobretudo como estilo de vida, maneira de estar no mundo. O Carnaval brasileiro, afinal, é uma tentativa dionisíaca de emprestar mais vida e sabor a uma humanidade cinzenta que só sabe consumir e destruir a natureza.

Carnaval é cultura. E cultura é o desvio fértil, aparentemente inútil, mas sem o qual não valeria viver.

Em 1942, Orson Welles veio ao Rio de Janeiro com a incumbência de fazer um filme para consolidar os laços com a América Latina e difundir a cultura norte-americana.

Tivemos sorte, pois o genial diretor de "Cidadão Kane"acabou traindo seus financiadores e se apaixonou pelo Carnaval carioca, que já naquela época estava ameaçado pelos "fenícios" locais com a simbólica destruição da praça Onze.

Hoje vivemos novamente um embate entre atores externos que promovem a "funkificação" do Rio, com a pretendida erosão da identidade nacional brasileira, e a atitude equivocada prefeito Marcelo Crivella em relação ao evento.

Tal cenário é abordado em minúcia no livro do professor George Yúdice, "A Conveniência da Cultura". Segundo ele, por meio de músicas não tradicionais como o funk e o rap, tenta-se "estabelecer novas formas de identidade, mas não aquelas pressupostas na compreensão do Brasil como sendo uma nação sem conflitos. Pelo contrário, a música é sobre a desarticulação da identidade nacional e a confirmação da cidadania local".

Sou otimista, Crivella é um homem inteligente e honesto, um dos mais profundos conhecedores da África no Brasil. Devo a ele e ao poeta Affonso Romano de Sant'Anna a organização exitosa de um curso para diplomatas africanos no Palácio Itamaraty, em agosto de 2010.

Estou seguro de que Crivella tem todas as condições de voltar a prestigiar a cultura que pode construir no Rio, no dizer de Affonso Romano, uma "plaza mayor" entre nossos povos.

Se nossa maior festa popular foi capaz de seduzir Orson Welles, como não terá o poder de reconquistar o prefeito Crivella? Viva o Carnaval!

JERONIMO MOSCARDO, diplomata, foi ministro da Cultura (governo Itamar Franco) e membro do Conselho Executivo da Unesco (1994 a 1996)

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