Folha de S. Paulo


editorial

Tiros em Ancara

Se o objetivo do policial turco que na segunda-feira (19) assassinou o embaixador da Rússia em Ancara era protestar contra as ações de Moscou na Síria, seu gesto tresloucado foi inútil. Se o intuito era criar embaraços à aproximação entre os presidentes Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan, o tiro pode ter saído pela culatra.

Até meados deste ano, Rússia e Turquia seguiam em rota de colisão. A principal causa de desavença entre os dois autocratas era a Síria.

Erdogan foi um dos primeiros a abandonar o ditador Bashar al-Assad após o início da guerra civil na Síria —a Turquia passou a apoiar os rebeldes sunitas moderados.

Putin, por sua vez, manteve-se ao lado de Al-Assad, e sua ajuda foi decisiva para o ditador sírio equilibrar-se no poder e, recentemente, tomar a dianteira na guerra.

Em lados opostos, Moscou e Ancara chegaram a experimentar momentos de tensão depois que tropas turcas derrubaram um caça russo na fronteira síria.

Hasim Kilic - 19.dez.16/Reuters
Policia turco empunha arma em galeria de arte de Ancara logo após assassinar o embaixador russo Andrei Karlov
Policia turco empunha arma em galeria de Ancara logo após matar o embaixador russo Andrei Karlov

Em julho, porém, uma tentativa de golpe na Turquia mudou as prioridades de Erdogan. Suas ações voltaram-se para o front interno, seja na repressão aos que alegadamente ou de fato procuraram destroná-lo, seja nos esforços para concentrar ainda mais poderes.

Com esse novo pano de fundo, limitaram-se as ambições de Erdogan na Síria. Ele ainda tem grande interesse em combater os guerrilheiros curdos e a facção Estado Islâmico, que promovem atentados na Turquia, mas já abre mão de ver os rebeldes moderados no poder.

Como essa configuração é compatível com os apetites de Putin, teve início, por assim dizer, uma bela amizade entre os dois autocratas.

A aproximação mostra-se útil sobretudo para Erdogan. O presidente turco se fortalece ao buscar opções para seu país além da Otan (aliança militar ocidental) e de uma cada vez mais longínqua perspectiva de entrada na União Europeia.

Essa circunstância, somada à posição-chave da Turquia para conter a crise de refugiados na Europa, fez com que a feroz repressão que Erdogan comandou em seu país não fosse objeto de ações diplomáticas mais duras por parte do Ocidente.

O ataque do policial no início desta semana não altera o jogo; o que pode mudá-lo é a entrada de Donald Trump no tabuleiro. O futuro presidente dos EUA, além de ter tendências isolacionistas, manifestou simpatia por Putin —e este talvez sinta-se à vontade para ousar não só na Síria mas também na crescente área sobre a qual Moscou exerce influência.

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