Folha de S. Paulo


editorial

Quente e frio

O acordo alcançado no sábado (15) por mais de 170 países em Kigali (Ruanda) sobre gases de refrigeração poluidores representa um avanço significativo para mitigar a mudança climática em curso. Há que precaver-se, no entanto, contra o otimismo exagerado.

Em pauta estavam os compostos HFCs, usados em refrigeração (geladeiras e aparelhos de ar condicionado, por exemplo). Eles se tornaram muito comuns após o Protocolo de Montreal (1987) banir os CFCs destruidores da camada de ozônio que nos protege do efeito cancerígeno dos raios ultravioleta.

Em Kigali se acordou eliminar os HFCs da indústria até meados do século, com cronogramas separados para três grupos de nações. Os países ricos começam antes, em 2018; Índia e outras nações tão pobres quanto quentes, só em 2028.

O perigo dos HFCs não diz respeito ao ozônio, mas a sua capacidade de reter radiação solar na atmosfera e assim aquecê-la ""em média 1.600 vezes maior que a do dióxido de carbono (CO2). Como já existem substitutos para refrigeração, caso da amônia e do próprio CO2, era consensual que se livrar dos HFCs constituía o modo mais fácil de frear o aquecimento global.

Um estudo de 2013, do Instituto Nacional para a Saúde Pública e o Ambiente da Holanda, estimou que uma redução como a acordada em Ruanda evitaria entre 0,3°C e 0,5°C de aquecimento da atmosfera. Uma contribuição significativa, vez que o Acordo de Paris (2015) almeja que a temperatura média não aumente mais que 2°C.

Negociações internacionais sobre mudança do clima, entretanto, sempre contêm algo de propagandístico. Neste caso, os defensores da emenda ao Protocolo de Montreal se fixaram no limite superior da banda (0,5°C), chamativo, mas que tem a desvantagem de transmitir a impressão de que há exatidão nessas predições.

Não há, claro. A química da atmosfera é dos fenômenos mais complexos, para nada dizer do efeito de cada composto na mudança climática e das incertezas aí envolvidas. Tanto é assim que o instituto alemão Climate Analytics calcula o ganho com banimento de HFCs em apenas 0,2°C.

Projeta-se que as metas voluntárias até aqui anunciadas pelos países signatários de Paris ainda levem a 2,7°C de aquecimento sobre os níveis pré-industriais. O refrigério dos HFCs, em qualquer das estimativas, ainda deixaria o mundo distante do objetivo.

A emenda negociada em Kigali é bem-vinda, mas não deve ser vista como uma bala de prata para reverter a alta da coluna de mercúrio.

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