Folha de S. Paulo


editorial

O legado de Beltrame

Encerrou-se a longa permanência de José Mariano Beltrame no cargo de secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. A renúncia, formalizada no início desta semana, ocorre num momento em que a repetição de tiroteios intensos em favelas indicam que correm risco os inegáveis avanços obtidos ao longo de quase uma década.

No governo fluminense desde 2007, Beltrame, delegado da Polícia Federal, implantou uma linha de trabalho baseada em inteligência e metas de longo prazo, no lugar da força bruta e do casuísmo político.

Como secretário, conteve a ingerência de deputados e vereadores na nomeação de oficiais da Polícia Militar e delegados da Polícia Civil —e resistiu à tentação de perseguir uma carreira política, diferenciando-se de antecessores.

Por meio de sua principal marca, a Unidade de Polícia Pacificadora (projeto que se iniciou em 2008), buscou superar a relação conflituosa entre agentes da lei e moradores de bairros imersos na violência.

Nas regiões em que a estratégia foi bem-sucedida, a presença do Estado —ao menos de seu braço armado— suplantou o controle territorial do crime organizado.

As UPPs são consideradas decisivas para a queda expressiva nos registros de homicídios dolosos. No Estado, a taxa por 100 mil habitantes caiu de 41,3, em 2006, para 25,4, em 2015; na capital, houve redução de 40,2 para 18,5 nesse período (a média brasileira se aproxima de 30; em São Paulo, a taxa é um pouco inferior a 10/100 mil).

Ao mesmo tempo, a letalidade da polícia fluminense também diminuiu, passando de um pico de 8,6 por 100 mil habitantes, em 2007, para 3,9 em 2015 —índice que chegou a 2,5 em 2013, mas sempre esteve entre os mais elevados do país.

O impacto positivo das UPPs, porém, tem prazo de validade. A ação policial deveria ser a primeira etapa de uma série articulada de políticas públicas, no intuito de suprir a histórica ausência do Estado.

Coincidência ou não, muitos dos indicadores de violência melhoraram sobretudo enquanto a economia brasileira crescia, ao passo que o retrocesso se concentra num período de crise.

A atual penúria financeira do Rio contribui para o desgaste de um projeto esmorecido. Episódios deploráveis, como o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, em 2013, se multiplicaram e estremeceram as relações com moradores.

Com a autoridade de quem se encarregou por tanto tempo de tarefa tão árdua, Beltrame deixa o cargo instando o poder público a empregar mais do que medidas de segurança na luta contra a violência. Deveria ser ouvido com atenção.

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