Folha de S. Paulo


JOSÉ ROBALINHO CAVALCANTI

Lei de repatriação de recursos é estímulo para a sonegação? SIM

JÁ ERA RUIM, PODE FICAR AINDA PIOR

Há cinco séculos, acossado pela necessidade financiar reformas na Santa Sé, o papado ofereceu aos fiéis, que doassem para esse fim, uma indulgência geral, vale dizer, perdão pelos seus pecados.

Temendo que esses motivos econômicos prevalecessem, no campo concreto e no campo moral, sobre o verdadeiro arrependimento diante de Deus, Martinho Lutero iniciou a crítica profunda que gerou a divisão da cristandade do ocidente e contrarreformas e reflexões que levaram também a Igreja Católica, então poder secular e espiritual, para longe dessas práticas. Na base do cisma, um dúvida moral: é possível comprar a virtude?

O dilema do século 16 continua verdadeiro, pois a venda de indulgências nunca foi tão atual. No Brasil, a lei nº 13.254/16 propôs regime que concede, ao fim e ao cabo, perdão por (graves) crimes, indulgência estatal, em troca de arrecadação tributária.

Os que lutam contra a lavagem de dinheiro afirmaram que, neste momento histórico em que o país avança para se passar a limpo, a lei de repatriação é um mau exemplo que só estimula o crime, vez que a esperança de impunidade, comprada pela via de um pernicioso pragmatismo, permaneceria sempre como uma chaga, tornando oficialmente naturais e aceitáveis atos passados de sonegação e assalto aos cofres públicos. E se o foram no passado, por que não o seriam no presente ou não voltariam a sê-lo no futuro?

Mais ainda foi alertado: a nação que envereda por esse caminho será sempre tentada a nele prosseguir, pois os recursos arrecadados nunca serão suficientes, e os beneficiados nunca julgarão adequadas as indulgências já obtidas. Pois bem: dito e feito. Chegou rápido a tentação.

Nem bem a malfadada lei completou um semestre, como previram os críticos, aos quais nos filiamos, e constatou-se que a arrecadação está abaixo do esperado. Assim permanecerá, até que as condições sejam entendidas como mais adequadas pelos beneficiários.

Querem novos prazos de adesão, condições mais amplas e claras e, principalmente, demandam que a Receita Federal afrouxe seus entendimentos sobre o preço a ser pago pelo perdão.

Diga-se que não se condena aqui os que assim postulam. Sob seu prisma, estão corretos. A lei foi criada para que comprem o perdão e, consumidores que são, querem conhecer previamente o que obterão e negociam as melhores condições. Possuem respeitáveis e bem elaboradas teses jurídicas a oferecer.

O erro está na lógica original da lei, em um Estado buscar o caminho de vender seus princípios e sua ética em troca do que, ainda que significativo em termos absolutos, constitui-se em meros trocados diante da enormidade das necessidades e do potencial arrecadatório sadio da economia.

Nesse quadro, aceitar a "negociação" que ora é proposta, ceder ainda mais e tão rápido, seria, sem dúvida, muito pior. Por enquanto, há uma mínima alusão a que as condições postas o foram, ainda que equivocadamente, pela soberania do Estado.

A lei impôs os requisitos para o perdão, a administração os aplicou e os insatisfeitos podem recorrer ao Judiciário. Caso o governo, contudo, ceda mais no campo legislativo ou, o que seria ainda pior, force a Receita Federal a abrir mão de seus padrões técnicos, não haverá retorno.

A virtude do Estado, ou o Estado na defesa das virtudes, por toda uma geração, parecerá ter um preço.

E um Estado que negocia virtudes não se impõe, não garante o desejado fim da impunidade e da corrupção e, vejam só a ironia, certamente arrecadará ainda menos no médio prazo, já que cada vez mais o crime de sonegação compensará.

JOSÉ ROBALINHO CAVALCANTI, é procurador regional da República e presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)

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