Folha de S. Paulo


Renata de Almeida

O vento nos levará

Na última segunda (4/7), tivemos a triste notícia da partida do cineasta iraniano Abbas Kiarostami.

Muito se falou e se escreveu nesses dias sobre o grande artista que ele foi, reconhecido por críticos e admirado por cineastas como Jean-Luc Godard e Martin Scorsese.

Abbas, o Magnífico, como estampou a capa da revista francesa "Cahiers du Cinéma" há alguns anos. Já que tanto foi dito sobre o poeta que veio do Irã e deslumbrou o mundo, irei apenas recordar-me do amigo.

Abbas veio ao Brasil pela primeira vez em 1994, durante a 18ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ele faria parte do nosso primeiro júri, que também contava com Maria de Medeiros, Chris Sievernich, Patrick Bauchau e Carlos Reichenbach.

Leon Cakoff, o criador da Mostra, e eu estávamos no escritório imaginando se ele já teria chegado ao hotel, quando alguém tocou a campainha: era Abbas. Não tendo encontrado ninguém no aeroporto, seguiu o endereço do fax que tinha em mãos.

Ficamos arrasados com o erro, mas ele, com sua elegância característica, mesmo depois de 22 horas de viagem, apenas disse que estava cansado e queria dormir um pouco.

Já sabíamos que Abbas tinha uma simpatia pelo Brasil por causa do filme "Vida e Nada Mais" (1992), no qual desabrigados do terremoto veem um jogo da nossa seleção em uma tela improvisada. Depois dessa primeira visita, a simpatia virou um carinho verdadeiro.

Mais de uma vez disse que, depois do Irã, o Brasil era o lugar onde se sentia mais confortável. Só lamentava o empecilho da língua, mas, como era um observador muito perspicaz e sensível, acredito que a dificuldade não era tão grande assim.

Ainda em 1994, estávamos com o júri em um restaurante na Liberdade quando Abbas, muito atrasado, chegou. Emocionado, contou que tinha seguido uma menina que abria lixeiras pela avenida Paulista. Descreveu como comprou um sanduíche e correu para deixá-lo na próxima lixeira, sem que ela percebesse.

Essa história virou um lindo conto publicado na "Cahiers", na "Film Comment" e nesta Folha. Só entendi a amplitude da sua emoção depois de lê-lo -a menina o fez lembrar-se da primeira paixão que teve quando ainda estava na escola.

Muito conversamos sobre a possibilidade de filmar esse conto e ele dizia que não estava muito certo se a história seria boa para um filme.

No ano seguinte, a TV Cultura convidou Leon e eu para fazermos uma reportagem para o programa "Metrópolis". Produzimos uma carta visual que virou o curta "Volte Sempre, Abbas", inspirado na história da menina. Vimos o curta ao lado de Abbas no Festival de Veneza. Foi uma noite bonita, na qual ele disse que jamais alguém havia recebido um convite tão original e carinhoso.

Nesse mesmo ano, ele criou o cartaz da 19ª Mostra, inspirado na avenida Paulista e em seus prédios.

Encontramos o Abbas muitas vezes em festivais e em outras cidades, mas ele só viria a São Paulo novamente em 2004, para uma retrospectiva e homenagem que realizamos na 28ª Mostra.

Naquele ano a estadia foi bem mais longa porque, além da retrospectiva, organizamos também uma exposição de fotos, o lançamento do livro "Abbas Kiarostami" (Cosac Naify) e uma oficina na Faap.

Até hoje encontro pessoas que comentam sobre o privilégio que tiveram em ter o Abbas como professor.

Em 2012, voltou pela última vez, na 36ª Mostra, a primeira após a morte de Leon.

Nós tínhamos nos encontrado em Cannes e, creio que percebendo a fragilidade do momento, Abbas prometeu que voltaria a São Paulo com seu filme "Um Alguém Apaixonado". Eu disse que seria uma ótima ocasião para homenageá-lo com o Prêmio Leon Cakoff, criado naquele ano.

Contou-me que estava com problemas de coluna e que, quando o médico perguntou por que tanto queria ir a um festival, respondeu: "Não é um festival, é minha família e ela está precisando de mim".
Completou dizendo que eu era sua irmã e que tinha o sentimento de me conhecer desde sempre. Então, muito feliz com a nova família, nos adotamos como irmãos a partir desse dia.

Abbas fez questão de me acompanhar ao prêmio da revista "Bravo!", para o qual eu havia sido indicada. No caminho, contou-me sobre as filmagens no Japão e uma história sobre o ator principal do filme, Tadashi Okuno.

Disse que era o primeiro papel do sr. Okuno como protagonista, que antes ele trabalhara apenas como extra ou coadjuvante. Mas, no final da filmagem, o sr. Okuno decidiu que queria mesmo era continuar a ser extra. Não era feito para ser protagonista e não aceitaria outro papel com tanto destaque. Pena, pois Abbas estava pensando nele para um outro projeto.

Enquanto estávamos no Auditório, Abbas contou algo sobre o Festival de Cannes de 1994, quando concorreu com "Através das Oliveiras".

Como a maioria dos jornais afirmava que o filme era o favorito, a câmera que transmitia a premiação começou a focar Abbas na hora do anúncio. Mas, para a surpresa de todos, o filme vencedor foi "Pulp Fiction", e a câmera teve que fazer uma curva acentuada em busca de Quentin Tarantino.

Abbas disse que estava tão apreensivo que a única coisa que sentiu foi um grande alívio. Três anos depois, ganharia a Palma de Ouro com "Gosto de Cereja", já mais preparado para discursos.

Hoje acho que Abbas contava essas histórias para me preparar, caso não ganhasse o prêmio. Ou, vendo o meu constrangimento com a situação, tentava me tranquilizar.

Acabei por ser a escolhida. Disse que dividia a conquista com Leon, onde quer que ele estivesse. E dediquei o prêmio também a uma pessoa que provava que amizade vence distâncias, vence nacionalidades, tempo, cultura ou costumes. Que, mesmo ausente, se torna presente quando mais precisamos.

Como discursei em português, acho que o Abbas nunca soube o que disse, mas levantou quando foi ovacionado pela plateia que ouviu o seu nome. Ou então entendeu tudo, porque o Abbas não precisava de legendas.

A última vez em que nos encontramos foi em 2014, novamente no Festival de Cannes. Ele era presidente do júri da mostra Cinéfondation (com obras de estudantes de cinema), do qual fazia parte Daniela Thomas. Numa roda de conversa do júri, ele disse para todos que eu era sua irmã. Comentei que Daniela também era minha irmã. Ele aceitou, mas disse que se eu tivesse outro irmão não valeria; eu garanti que não, ele era o meu único irmão.

Em fevereiro deste ano, combinamos que ele voltaria a São Paulo para os 40 anos da Mostra. Abbas faria uma oficina de fotografia e uma exposição com os seus novos trabalhos. Estava feliz, disse que tinha voltado de Cuba e falado de mim, do Leon e da Mostra com o embaixador brasileiro. Iria filmar em abril, mas reservaria as datas para a Mostra.

Depois de um tempo sem respostas, recebi a notícia de que estava internado. Mandei uma mensagem e flores por meio da família de um amigo iraniano. Alguém agradeceu por ele, dizendo que seu coração se enchera de alegria. Foram as últimas palavras que recebi de Abbas.

Hoje vi algumas entrevistas do Abbas na internet. Numa delas dizia que o mais importante é viver e usar as experiências e os sentimentos. Afirma que gostava de viver, que não se importava muito com o que iria deixar, que, se tivesse de escolher, viveria mais e não deixaria nada. Sempre surpreendente e fora do lugar comum.

Mas não deu, ele se foi e nos deixou uma obra magnifica.

Só com o tempo aprendemos a não lamentar o que perdemos, e sim a ser gratos pelo que tivemos. Então, só tenho que agradecer a este irmão de última hora e dizer: ainda bem que ele nos deixou tanto.

RENATA DE ALMEIDA, produtora e curadora de cinema, é diretora da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

PARTICIPAÇÃO

Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br.


Endereço da página:

Links no texto: