Folha de S. Paulo


opinião

Andrew Helsop: O que representa um número?

O que representa um número^? O número em questão é 1.122 e não para de aumentar. Você já deve ter ouvido isso antes, mas vale a pena repeti-lo. No momento em que este texto é publicado, 1.122 representa o número de jornalistas sabidamente mortos desde 1992 enquanto faziam seu trabalho.

Nos últimos 23 anos, morreu quase um colega jornalista por semana, em média.

Por trás das estatísticas estão histórias de amigos e colegas perdidos. Mas essas mortes também nos oferecem uma visão crucial do que motiva aqueles que matam jornalistas.

Para começo de conversa, está claro que os assassinos de jornalistas não se preocupam muito com a possibilidade de serem pegos. Dados revelam que a maioria imensa dos casos de assassinato (que compõem 740 das 1.122 mortes registradas) -quase 90%– continua sem solução. Os responsáveis por mais de 660 mortes continuam em liberdade.

Essas cifras vêm de nossos colegas do Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), sediado em Nova York. Recomendo a você estudar os dados mais de perto (https://cpj.org/killed/). Eles fornecem um quadro detalhado dos indivíduos, suas pautas, o ambiente em que estavam trabalhando e quem podem ter sido seus assassinos.

O site também serve como registro histórico, não apenas relatando a história das vidas perdidas, mas detalhando como esses jornalistas viveram seus momentos finais a serviço de nossa profissão. Trata-se de um recurso de poder emocional intenso para os vivos, que vem nos recordar que não devemos enxergar nossa liberdade como algo certo e garantido.

Mas um fato importante é que esses dados brutos incentivam uma investigação mais ampla. A interpretação que fazemos deles ajuda a moldar soluções que, um dia, vão resultar na proteção melhor da mídia. Enquanto isso, os números fundamentam claramente as reivindicações que fazemos àqueles no poder que têm a capacidade de frear esses ataques mortais e inverter essa tendência.

Deixando de lado a possibilidade de que os criminosos que atacam jornalistas repitam seus atos, como é provável sob um clima de impunidade, quem pode dizer que eles -ou as pessoas contratadas para matar em seu nome-não sejam responsáveis também por outros crimes graves, outras mortes? Nos países em crise de impunidade, como Iraque, Somália, as Filipinas, etc., as autoridades são impotentes para proteger a vida de jornalistas. As estatísticas são um aviso às sociedades inteiras de que a criminalidade está pisoteando a lei e a ordem.

É um terreno fértil para ser explorado por qualquer jornalista, mas, novamente, com a impunidade deslavada, a autocensura muitas vezes é a única maneira de proteger-se contra virar o próximo alvo.

Examinemos algumas das cifras.

Quarenta e seis por cento das mortes registradas envolveram jornalistas que cobriam política.

A cobertura de corrupção e criminalidade responde por outras 35% das mortes.

Para os profissionais que investigam os níveis mais altos da sociedade, as implicações são claras.

Nos países mais onde a impunidade está mais presente, a capacidade de investigar de modo completo e justo pode ser gravemente limitada por um sem-número de pressões internas, enquanto as garantias de independência entre aqueles que comandam o país e os que são responsáveis pela lei muitas vezes são muito fracas. Nessas condições, os sistemas judiciários são sequer capazes de processar crimes contra jornalistas?

Os dados sugerem que não.

Uma possibilidade mais sinistra: pode haver cumplicidade das forças de segurança, justamente aquelas que deveriam proteger?

Mais uma vez os números nos dão motivo para preocupação. Em 35% dos casos, autoridades governamentais ou militares são os responsáveis suspeitos pelos crimes. Com isso o jornalismo se torna vítima de um efeito de medo que silencia a opinião crítica em todos os setores da sociedade. Em um ambiente desse tipo, a justiça é possível?

Em última análise, os autores intelectuais -aqueles que deram a ordem, pagaram pelo crime ou escolheram um jornalista individual como alvo-ficam ainda mais longe de serem levados à justiça.

Dos jornalistas mortos desde 1992, 87% (976) foram jornalistas locais. Vistos isoladamente, esses números revelam pouco. Mas, quando sobrepomos a eles os países mais letais nesse período -entre eles o Iraque (166 jornalistas mortos desde 1992), Síria (80), Somália (56), Paquistão (56) e México (32)–, começamos a entender que jornalistas locais, provavelmente menos bem treinados e financiados e contando com suporte menor, estão cobrindo áreas aos quais jornalistas estrangeiros não têm mais acesso ou para as quais suas empresas de jornalismo não querem mais enviá-los.

É preciso encontrar uma solução para melhor proteger e equipar todos os jornalistas em risco, mas em especial os repórteres locais que fornecem notícias às organizações noticiosas estrangeiras. Trata-se de uma meta alcançável, que o setor tem plenas condições de realizar. Se o conteúdo fornecido por esses jornalistas locais está sendo usado, existe uma obrigação moral de contribuir para a proteção daqueles que colocam suas vidas em risco para fornecer esse conteúdo.

Conflitos e guerras ainda são responsáveis por uma grande parcela do número total de mortes registradas. Enquanto no passado o fato de um jornalista se identificar como "imprensa" os protegia, desde que os dados começaram a ser registrados os perigos decorrentes dessa identificação cresceram. Ao todo 426 jornalistas morreram cobrindo guerras, e estimados 224 morreram em combates ou situações de fogo cruzado. Outros 146 jornalistas foram mortos cobrindo pautas perigosas.

Uma estatística final que merece consideração especial pela WAN-IFRA e sua comunidade: 51% de todas as mortes registradas desde 1992 envolveram jornalistas a serviço da mídia impressa.

Creio que não faríamos nenhuma objeção se essa cifra diminuísse.

ANDREW HELSOP é diretor da WAN-IFRA (World Association of Newspapers and News Publishers) para a liberdade de imprensa

Tradução de CLARA ALLAIN


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