Folha de S. Paulo


Editorial: Corrupção sistêmica

A atual crise brasileira provoca sentimentos que variam da exasperação ao desalento, em especial no que diz respeito à corrupção extensa e aparentemente incontrolável.

Tamanha conturbação, entretanto, deve-se em parte ao atrito do progresso de algumas instituições com a inércia de relações decrépitas entre o Estado e a sociedade, sobretudo na esfera econômica.

Leis, instituições de controle, investigação e punição em alguma medida chegaram ao ponto de abalar o desencanto ou o cinismo suscitados pela expectativa de impunidade, não faz muito tempo tida como norma.

O avanço ainda é modesto, recente e de resultado incerto. Mais do que isso, a ampliação dos mecanismos de controle e a imposição de penas mais severas não podem, sozinhas, dar conta de um problema essencial: o dos excessos históricos de intervenção econômica do Estado, a qual oferece oportunidades a todo tipo de falcatrua.

Uma lista breve dos episódios de corrupção mais gritantes e recentes basta para indicar um elenco preocupante de problemas.

A regulamentação excessiva e obscura da atividade econômica propicia situações em que fiscais de impostos ou de normas urbanas, em geral associados a empresários, desencaminham a ordem ou o dinheiro públicos.

São recorrentes as notícias sobre máfias dessa natureza nos municípios. Desbaratada em 2013, uma delas, a do ISS (Imposto sobre Serviços), teria desviado cerca de R$ 500 milhões do cofre paulistano.

Os governos, além disso, gastam demais e incrementam as despesas de modo imprevisto. À beira da penúria ou em plena crise, remediam a imprevidência com impostos improvisados, que não seguem padrão racional de tributação.

O arranjo feito às pressas, ruim em si, soma-se à barafunda de regras especiais ou favores destinados a agraciar grupos de interesse e a remendar ineficiências ou problemas econômicos de base.

A legislação complexa, imperita e "ad hoc", implementada por vorazes cobradores de impostos, pois incentivados por um Estado ávido, resulta em inúmeros e milionários contenciosos com a Receita.

Além de causar insegurança jurídica e incerteza econômica, o caos tributário provoca mais ineficiência e gera novas oportunidades de corrupção. Força companhias a destinar recursos para administrar o cumprimento de obrigações fiscais e para promover atividades de lobby político-tributário. Por vezes, as engaja em suborno.

A revelação de que um esquema de sonegação funcionava no tribunal da Receita, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), ilustra o ponto. Dívidas tributárias eram reduzidas ou desapareciam após o pagamento de propinas. Segundo a Polícia Federal, os cofres públicos sofreram prejuízo de, no mínimo, R$ 5,7 bilhões.

O escândalo da Petrobras oferece outro exemplo concentrado da criação de oportunidades de ilícitos.

Uma empresa gigantesca, um oligopólio próximo do monopólio, foi obrigada pelo governo a tomar decisões orientadas antes pela ideologia do que pela eficiência. Sem pressão concorrencial, sucedeu-se o previsível descaso com custos crescentes ou criminosamente despropositados.

O desperdício vicejou devido a investimentos improdutivos ditados pelo arbítrio do governante, como os de várias refinarias; devido a reservas de mercados para fornecedores nacionais; devido ao gigantismo de despesas e da própria atuação, que escapam aos recursos disponíveis de controle, sejam sociais ou administrativos.

Segundo informou esta Folha, a Petrobras calcula que as perdas com a corrupção investigada na Operação Lava Jato devem ficar entre R$ 5 bilhões e R$ 6 bilhões.

Outros focos de bandalheira surgem a partir da intimidade de estatais e bancos públicos (notadamente o BNDES) com grandes empresas. Não raro o tráfico de influência política mostra-se rentável e se torna indiscernível o benefício público e privado de certas transações, como as privatizações ou a criação de "campeãs nacionais".

A existência de oligopólios em setores relevantes da economia, combinada com o relativo fechamento do mercado à concorrência internacional, favorece a organização de carteis e o superfaturamento de contratos. Tal estado de coisas em grande parte deriva de políticas públicas que um dia –e outra vez agora– se chamaram de "desenvolvimentistas".

É inegável que deficiências na burocracia são o outro lado dessa moeda podre da ordem econômica.

O poder discricionário dos funcionários muitas vezes é excessivo. A falta de projetos detalhados de obras públicas e de regras claras e simples de regulação e autorização de empreendimentos propicia a negociação ilegal.

O arbítrio nas milhares de nomeações para cargos públicos ajuda a formar quadros engajados em fraudes. Os orçamentos públicos são obscuros e manipulados.

Ainda assim, a velha ordem econômica brasileira de parcerias indevidas entre público e privado, entre Estado e empresa, tão invocada em nome da aceleração do desenvolvimento, tem grande peso no enraizamento e na modernização do hábito do favor. Despendem-se energias empreendedoras na busca de benefícios estatais ou na burla da competição, quando não na pura corrupção.

O conjunto da obra, só não vê quem não quer, perverte o sistema político, degrada a eficiência econômica e eterniza privilégios sociais.


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