Folha de S. Paulo


Marijane Lisboa: Burocracia enferrujada

Quem conhece a maravilha que é o sítio arqueológico do Parque da Serra da Capivara e leu a reportagem "Em crise, parque arqueológico do Piauí pode ficar sem segurança" ("Ciência", 15/01/2014), se arrepiou.

São centenas de pinturas rupestres em meio a uma natureza luxuriante representando seres humanos, animais, árvores, festas, cerimônias, partos e beijos. Aqueles que deixaram tais pinturas foram os primeiros brasileiros, com perdão do anacronismo, cujas pinturas cheias de vida, movimento e encanto testemunham, milhares de anos depois, a sua humanidade tão semelhante à nossa.

A arqueóloga Niéde Guidon se dedicou à pesquisa desse incrível patrimônio arqueológico ao ar livre, organizando um museu local e criando a Fundação Museu do Homem Americano, encarregada de preservá-lo. Por ser um Parque Nacional, cabe ao Estado brasileiro fornecer recursos para pagar boa parte dos seus guardas, pois precisa ser protegido da caça ilegal, de vandalismo e mesmo de acidentes com os visitantes.

Visitei a Serra da Capivara em 2003, quando era secretária de Qualidade Ambiental dos Assentamentos Humanos do Ministério do Meio Ambiente (MMA), à época presidido por Marina Silva. Niéde Guidon me recebeu furiosa. Há meses aguardava recursos necessários para pagar funcionários. Ia vender dois jipes para demiti-los e indenizá-los (o filme se repete, 10 anos depois!). Estava cansada de escrever, telefonar e aguardar em vão respostas do Ibama. Voltei para Brasília com cópias de todas as cartas enviadas ao MMA e ao Ibama e fui direto à Marina. Ela não tinha sido informada do que estava ocorrendo, no Ibama se alegava que Niéde Guidon não havia prestado contas, a prestação de contas e as cartas não haviam chegado aos seus superiores, enfim, depois de muitas idas e voltas pelos corredores do poder, tudo se esclareceu e o dinheiro foi enviado a tempo.

Essa não foi minha única experiência com a irracionalidade da administração pública durante o ano e meio que permaneci no MMA. E que não se pense que este fosse um problema do MMA. Toda a administração pública, no Brasil e no mundo, tende naturalmente à burocracia, no mal sentido da palavra (não no weberiano). De fato, embora a teoria política afirme que o Estado é um ente racional, uma vez que é formado para administrar racionalmente sociedades, caso não haja alma animando-o suas diversas engrenagens enferrujam-se, e aos poucos ele emperra e se desarticula.

Sem supervisão, o autômato, essa máquina do qual em parte o Estado se constitui, aos poucos se imobiliza. A apuração das responsabilidades se pulveriza pelos seus muitos subsistemas, onde cada um trata de fazer meticulosamente bem (ou não) a sua parte: não se paga até que chegue a prestação de contas no formato adequado, não se envia recursos enquanto não se aprovar o orçamento anual, não se compra material enquanto não for feita uma licitação de acordo à lei, enfim, a divisão de responsabilidades em dezenas de departamentos e órgãos, submetidos cada um deles a uma hierarquia determinada e a uma lógica própria –a racionalidade visando os fins, própria a toda a sociedade moderna– gera o que o sociólogo alemão Ulrich Beck, em relação aos danos ao meio ambiente e à saúde pública, chamou de um "sistema de irresponsabilidade organizada". Todos são responsáveis por alguma pequena parte, mas ninguém é responsável pelo conjunto da obra.

Funcionário do Ibama diz uma coisa, a Petrobras outra, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) parece que não diz nada e ainda faltou que a ministra do MMA se manifestasse, bem como o Ministério da Cultura, pois ele também é um dos mantenedores do parque. Porém, de quem será a responsabilidade caso a Fundação demita os seus guardas, e vândalos (no verdadeiro sentido da palavra) penetrem no parque e escrevam os seus "estive aqui" no meio das pinturas de milhares de anos? E se uma parede ruir, levando todas essas pinturas? E se as múmias mantidas no museu se decompuserem, em virtude da falta de energia?

A única garantia contra o "enferrujamento" do Estado e sua transformação em autômato emperrado e irracional somos nós, a sociedade. Somos nós, a alma dessa máquina, os que deveríamos exigir que os seus mecânicos (que elegemos) a consertem e a lubrifiquem, de modo que possa cumprir uma das tarefas para a qual foi construída: no caso em questão, preservar o patrimônio cultural e natural Serra da Capivara.

MARIJANE VIEIRA LISBOA, 66, doutora em ciências sociais e professora da PUC-SP, ex-secretária de Qualidade Ambiental dos Assentamentos Humanos do Ministério do Meio Ambiente (2003-2004)

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