ANTIPÁTICA, MAS NECESSÁRIA
O episódio recente de confronto entre torcedores do Atlético-PR e do Vasco da Gama é mais um capítulo de uma novela que não tem fim.
A manifestação de violência dentro e fora dos estádios de futebol não é recente, tendo se intensificado a partir do início da década de 1990. E coincide com o surgimento e proliferação das torcidas organizadas por todo o país.
É fato que a violência no futebol brasileiro não pode ser separada da violência que assola a sociedade como um todo. E nos últimos 20 anos, tornamo-nos uma coletividade que banalizou a violência --especialmente os casos de homicídio.
O respeito à vida como valor social deteriorou-se amplamente, de modo que os freios morais para a contenção do impulso da agressividade estão muito fragilizados.
Como consequência, a utilização da força física para imposição de interesses e resolução de conflitos dissemina-se nos mais diversos ambientes sociais: na família, no bairro, na escola, no trânsito e nos eventos esportivos e culturais.
A despeito dessa dimensão social do fenômeno, deve-se considerar que as torcidas organizadas têm potencializado a violência no futebol. Elas constituem focos geradores de práticas violentas, influenciando o próprio contexto social em que se inserem. Ou seja, a violência na sociedade é estimulada também pela violência no futebol.
As torcidas organizadas de modo geral estão estruturadas pelo "ethos" da virilidade, da masculinidade e da afirmação da força física contra torcedores adversários, que podem ser inclusive integrantes de outra torcida do mesmo clube de futebol. Estes, na verdade, são tratados como inimigos --alvos, portanto, do sentimento de ódio.
Quando há tal aversão pelo outro, o impulso da agressividade é dificilmente controlado. Ao contrário, os membros das torcidas organizadas que são capazes de infringir danos físicos aos "inimigos" são respeitados e valorizados pelos companheiros. Os atos de violência desses torcedores compõem a identidade da organização da qual participam. Constituem, portanto, procedimentos institucionalizados na sociabilidade cotidiana desses grupos sociais.
É equivocado, sob tal ponto de vista, o argumento de que a violência é provocada por delinquentes supostamente infiltrados no interior das torcidas organizadas.
O momento exige a adoção de medida legal que não se restrinja ao monitoramento e repressão dos integrantes violentos das torcidas organizadas. Isso deve continuar sendo feito, porém faz-se necessário dar um passo adiante. A simples responsabilização criminal dos torcedores que perpetram atos de violência não será capaz de pôr fim às cenas de brutalidade que testemunhamos no estádio de Joinville (SC).
Está em questão o grau de responsabilidade do coletivo sobre o individual. Considerando que o coletivo torcida organizada molda em boa medida atitudes e comportamentos dos indivíduos que a ela se filiam, é imprescindível que esse coletivo seja desestruturado mediante a expressa proibição de sua existência.
Tal proibição implica a impossibilidade de o grupo se formar como pessoa jurídica, ter sede, arregimentar membros, produzir e vender camisas e outros objetos alusivos e se apresentar junto dentro dos estádios de futebol. É uma medida dura, controversa e antipática, mas necessária diante de nossa realidade.
LUIS FLAVIO SAPORI, 48, doutor em sociologia, ex-secretário-adjunto da Segurança Pública de Minas Gerais, é membro do conselho de administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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