Folha de S. Paulo


Oscar de Moraes Cordeiro Netto: Triste notoriedade da água

A Operação Porto Seguro levou à denúncia, como chefe de quadrilha, de um diretor da até então desconhecida Agência Nacional de Águas (ANA). Trata-se de uma agência federal que, por não exercer um papel regulador direto em relação aos consumidores de água, acaba não tendo visibilidade para a população.

Hoje, a ANA tem notoriedade, pena que tenha sido pelos pretensos malfeitos de um de seus dirigentes e não por sua importante missão.

Falemos de água, esse recurso essencial à vida e ao desenvolvimento cujo dia é comemorado mundialmente hoje. O Brasil é o país mais rico em água da Terra. Em média, 18% da água doce renovável do planeta circula por território brasileiro anualmente. É a água que molda nossos ecossistemas, que abastece a cidade e o campo, que produz energia e alimento.

Mas é um recurso caprichoso: nem sempre está disponível quando e onde se deseja. É um recurso frágil, sujeito a contaminação e poluição. E é um recurso difícil de ser gerenciado: são por vezes antagônicos os interesses e as visões em relação à água.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil vem construindo um sistema de gestão das águas, envolvendo poder público, setores produtivos e sociedade, atuando no nível nacional, nos Estados e nos espaços das bacias e regiões hidrográficas. Muito se fez nesses últimos 25 anos. Há hoje mais de 160 comitês de bacia instalados no país, colaborando na adoção de práticas de uso e proteção da água.

A ANA é parte desse sistema. É, de um lado, a agência reguladora, que zela para que haja um uso sustentável das águas de nossos rios. É, por outro lado, provedora de meios técnicos, como os dados hidrometeorológicos, necessários a um adequado gerenciamento.

O modelo de gestão do Brasil já é uma referência em todo mundo. Já foram até criadas outras ANAs na América Latina, inspiradas em nossa experiência.

O cidadão brasileiro pode não saber, mas há muitas decisões tomadas pela ANA que são de seu maior interesse, como a regra de repartição de água do Sistema Cantareira em São Paulo, a forma como se dará a transposição de águas do São Francisco, a definição da operação das grandes barragens e o monitoramento das secas e das inundações.

Para desempenhar essa missão, a ANA conta com uma equipe de servidores concursados e é dirigida por uma diretoria colegiada, com diretores indicados pelo presidente e aprovados pelo Congresso.

Muitas das decisões da ANA são complexas, tratam de interesses os mais variados da sociedade e se revestem de caráter estratégico. Espera-se que o brasileiro que assuma uma diretoria tenha os atributos demandados para exercício do cargo.

Não parecia ser o perfil do diretor denunciado. E não foi por falta de avisos: houve diversas manifestações contrárias à sua indicação e até uma recusa, em uma primeira votação no Senado. Mas, eram obstinados candidato e padrinho político e se aprovou o nome do diretor no Congresso. Deu no que deu.

Oxalá quando a ANA voltar a ter toda essa notoriedade na mídia, que seja por alguma questão relevante para as águas do Brasil!

OSCAR DE MORAES CORDEIRO NETTO, 56, engenheiro civil, doutor pela École Nationale des Ponts et Chaussées (França), é professor da Universidade de Brasília e ex-diretor da Agência Nacional de Águas (2004 a 2008)

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