Folha de S. Paulo


Exílio de Trótski ilustra México fervilhante

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Trotski (de óculos), com a mulher, Natalia Sedova, a pintora Frida Kahlo e o americano Max Shachtman
Trotski (de óculos), com a mulher, Natalia Sedova, a pintora Frida Kahlo e o americano Max Shachtman

Quando o ex-líder soviético Leon Trótski (1879-1940) desembarcou no porto de Tampico, em janeiro de 1937, o México vivia anos de ebulição política e cultural em consequência da Revolução Mexicana (1910-1920).

A partir dos anos 20, principalmente com os governos de Álvaro Obregón, Plutarco Elías Calles e Lázaro Cárdenas, "o México havia se transformado num local muito atraente para a intelectualidade internacional, e levantou interesse pelas profundas reformas que vinham sendo feitas na sociedade", disse à Folha a professora de história da América Latina da USP, Maria Ligia Coelho Prado.

Podem-se incluir aí a reforma agrária e do sistema educacional público, as leis trabalhistas, a nacionalização do petróleo e intenso estímulo à cultura e à educação.

Foram promovidos principalmente por José Vasconcelos (1882-1959), que, como secretário da Educação Pública, financiou a edição de textos clássicos e o trabalho de muralistas como Diego Rivera, José Clemente Orozco e David Alfaro Siqueiros, que em suas obras retrataram as transformações no país.

Entre essas políticas, estava o acolhimento de perseguidos de diferentes latitudes, desde os republicanos derrotados na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) até o soviético Trótski, que tentava fugir da sanha de Josef Stálin (1878-1953).

"Trótski encontrou um ambiente intelectual que se mostrou muito interessado nele e que girava em torno dos artistas de esquerda do universo de Diego Rivera e Frida Kahlo. Mas a partir do momento em que as ameaças à sua vida se tornaram mais intensas, muitos se afastaram e ele se refugiou em seu jardim e em seus escritos", afirma à Folha o escritor cubano Leonardo Padura. "Creio que, quando foi assassinado, em 1940, já andava solitário."

O autor do romance "O Homem que Amava os Cachorros" (Boitempo, 2013), que trata da história do assassino de Trótski, Ramón Mercader, acrescenta: "Num primeiro momento, todos queriam ser amigos de Trótski, mas havia muito de exibicionismo intelectual nesse gesto. Quando se sentiu o perigo, as pessoas se afastaram".

DETALHE

"Isso não quer dizer que o México daqueles tempos não fosse muito interessante para a intelectualidade, Trótski foi um detalhe nesse cenário rico", conclui o cubano.

O ambiente cultural e intelectual era tão variado que levou o surrealista André Breton, convidado a dar uma palestra na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), em 1938, a dizer que aquele era "o país mais surrealista do mundo".

Breton e Trótski se encontraram e, junto com o muralista Diego Rivera, que havia feito os arranjos para o refúgio do soviético em terras mexicanas, escreveram o manifesto "Por uma Arte Revolucionária Independente".

Por causa de uma condição imposta pelo então presidente Lázaro Cárdenas de que Trótski não poderia se meter na política mexicana, muito do que o soviético escreveu sobre o México foi publicado posteriormente ou sob a assinatura de seus amigos.

Além de Breton, é longa a lista de artistas e intelectuais que buscaram no México refúgio de um mundo em conflito, a caminho da Segunda Guerra, e onde os totalitarismos já se anunciavam.

Pelo país passaram ou viveram, naqueles anos, pensadores de diferentes correntes políticas como o poeta chileno Pablo Neruda, a fotógrafa italiana Tina Modotti e os escritores britânicos Malcolm Lowry e Graham Greene.

Sobre o México, os dois últimos escreveram, respectivamente, "À Sombra do Vulcão" (1947, com edição da L&PM de 2007) e "O Poder e a Glória" (1940, no Brasil publicado pela Record e depois em 2008 pela Best).

"Foram tempos difíceis para Trótski, pois pressentia a possibilidade de ser assassinado a qualquer momento. Mas o ambiente e as pessoas que ele encontrou no México fizeram dele um homem feliz em seus últimos anos. Um universo como aquele, naquela época pré-Guerra, só existia no México", disse à Folha o escritor francês Patrick Deville, 59, autor de "Viva!" (Editora 34, 2017), que retrata esse período na vida do ex-líder revolucionário.

É uma pena que o Brasil não tenha celebrado a efeméride da Revolução Mexicana e o impacto na América Latina como lembra agora o centenário da Revolução Russa.

Foi preciso que Trótski se estabelecesse no México por alguns anos para dar projeção, no Brasil, à ebulição cultural e política que ocorria nesse país então tão vanguardista, de passado colonial que guarda similitudes ao nosso e localizado no mesmo continente.


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