Folha de S. Paulo


Análise

Uma votação legítima, nacional e local, talvez rompa impasse

A esperada maioria esmagadora a favor da independência não a tornou mais iminente ou possível, mas conseguiu salgar a ferida aberta entre uma parte importante da sociedade catalã e uma parte ainda mais importante dos espanhóis.

Não haveria independência da Catalunha, votassem quantos votassem. Para que houvesse uma decisão legítima, seria preciso um acordo entre o governo central e o governo catalão para convocar uma votação, aí sim válida, mais ou menos como ocorreu na Escócia (e a independência perdeu, é bom lembrar).

Agora que há centenas de feridos no caminho de qualquer acordo, o que só faz aumentar a ira dos independentistas, tudo ficou mais difícil e mais radicalizado, de parte a parte.

A dificuldade para o dia seguinte aparece com absoluta clareza na análise de Juan Luis Cebrián, presidente de "El País" e o mais influente jornalista espanhol: "Aconteça o que acontecer, haverá que abrir caminho para uma negociação e o pacto. Nem Puigdemont nem Rajoy poderão ser interlocutores".

Carles Puigdemont é o chefe do governo catalão e, como tal, a cabeça mais visível do movimento pela independência. Mariano Rajoy é o presidente do governo espanhol e, como tal, o comandante do cerco ao plebiscito.

Se Cebrián dá a ambos como inviáveis como interlocutores e se não está à vista o afastamento de um e de outro, cria-se uma situação sem saída.

Afastar Puigdemont é até possível, na medida em que a convocação de um plebiscito ilegal pode sujeitá-lo à punições, até mesmo a uma intervenção na Catalunha, o que o tiraria do governo.

Hipótese assim analisada por James Badcock, editor da página em inglês de "El País": "Implementar um bloqueio do governo dirigido pelo primeiro-ministro catalão Carles Puigdemont requereria potencialmente tropas no terreno. E, embora políticos espanhóis não tenham sido tímidos em mandar grande número de policiais para a Catalunha nos dias que antecederam o referendo, eles tradicionalmente hesitam em usar militares em tais circunstâncias".

Completa: "Fazê-lo ecoaria as ações da ditadura de Franco (1936/1975) que controlou o país por boa parte do século 20, o que minaria ainda mais o apoio ao governo nacional —e não apenas na Catalunha".

Na verdade, nem foi preciso usar tropas para que os independentistas evocassem Franco ao criticar as providências do governo central para impedir o plebiscito.

Uma comparação evidentemente despropositada: se o Tribunal Constitucional declarou ilegal a votação, nenhum governo poderia cruzar os braços e deixar que ela ocorresse.

Criou-se, seja como for, uma crispação extraordinária, a ponto de os prefeitos da Catalunha contrários ao plebiscito terem acusado os pró-independência de persegui-los.

Fora da Catalunha, as vaias que sempre cercam as apresentações do zagueiro Gerard Piqué, astro do Barcelona e da seleção espanhola e propagandista da independência, evidenciam a irritação de boa parte dos espanhóis com o catalanismo.

É, pois, um ambiente nada propício à qualquer negociação e menos ainda a um pacto.

A única —e difícil— alternativa eventual seria convocar eleições legítimas, nacionais e regionais. Com sorte, muita sorte, ganharia nacionalmente um conjunto de forças mais inclinadas ao diálogo e, na Catalunha, líderes, mesmo que independentistas, menos demagógicos e menos oportunistas.


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