Folha de S. Paulo


Primeira-dama do Japão não fala inglês com Trump e cria polêmica

Susan Walsh - 10.fev.2017/Associated Press
FILE - This Feb. 10, 2017, file photo shows President Donald Trump and Japanese Prime Minister Shinzo Abe, accompanied by their wives, first lady Melania Trump and Akie Abe, as they wave before boarding Air Force One at Andrews Air Force Base Md. In the world of diplomacy, some things are bound to get lost in translation. President Donald Trump, who sat next to Japan's first lady during dinner at a recent international summit, says Akie Abe can't muster even a
Donald Trump e o premiê japonês, Shinzo Abe, acompanhados de Melania e Akie

A entrevista do presidente Donald Trump ao "The New York Times" na quarta-feira (19) tocou em diversos temas de peso, como as tentativas malogradas dos republicanos de aprovar uma lei de saúde e o que constituiria uma "linha vermelha" na investigação sobre a Rússia liderada pelo promotor especial Robert Mueller.

Mas um trecho em particular incendiou uma parte da internet. Nele, Trump descreve um jantar para os líderes do Grupo dos 20 que ocorreu na Alemanha no início deste mês e menciona que ele estava sentado ao lado de Akie Abe, mulher do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe.

Havia uma barreira linguística, disse Trump à repórter Maggie Haberman:

Trump: (...) Então, eu estava sentado ao lado da mulher do primeiro-ministro Abe, que eu acho um sujeito sensacional, e ela é uma mulher sensacional, mas não fala inglês.

Haberman: Como assim, nada? Zero?

Trump: Nem "olá".

Haberman: Deve ter sido uma estranha companhia.

Trump: Bem, é difícil, porque sabe, você fica sentado ali durante...

Haberman: Horas.

Trump: Então, o jantar durou provavelmente uma hora e 45 minutos.

Não demorou muito para que pessoas se revoltassem. Motoko Rich, o chefe da sucursal do "NYT" em Tóquio, descreveu-a como uma "nota falsa".

Na manhã quinta-feira (20), foi desenterrado um vídeo no YouTube que mostrava Akie Abe falando durante 15 minutos em inglês em um simpósio em 2014 sobre a resiliência do litoral de Nova York. Em pouco tempo o vídeo circulava nas redes sociais, muitas vezes ao lado dos comentários de Trump sobre os dons idiomáticos de Abe.

Na tarde de quinta, especulações corriam soltas na internet: Abe fingiu que não falava inglês para não ter de conversar com Trump no jantar de quase duas horas?

"A primeira-dama do Japão, Akie Abe, misteriosamente não sabia falar inglês quando encontrou Donald Trump no G20", informou um título da revista "Newsweek".

"Trump diz que primeira-dama do Japão não fala inglês –mas este vídeo mostra outra coisa", declarou o site MarketWatch.

No entanto, assim como muitas histórias sobre Trump que se tornam virais na rede, a realidade tem mais nuances do que as teorias apressadas da internet.

A questão de quão bem Akie Abe fala inglês foi um jogo de adivinhação na quinta-feira entre jornalistas e diplomatas japoneses em Washington, assim como alguns estudiosos do Japão em grupos de pensadores americanos.

Embora ninguém pudesse dizer com certeza qual era o nível de fluência de Abe, a maioria concordou que o que foi caracterizado como uma possível esnobada política havia sido mais provavelmente uma convergência da capacidade limitada de Abe em inglês e um desejo de não falar errado.

É claro que é mentira que Abe fala "zero" de inglês. (No mínimo é impensável que a primeira-dama japonesa não conheça a palavra "olá", mesmo que ela não a tenha dito a Trump no jantar do G20).

Segundo um extenso perfil de Abe no "Japan Times", ela frequentou a Escola Internacional do Sagrado Coração, de língua inglesa, em Tóquio, do jardim de infância ao colegial, e mais tarde trabalhou na Dentsu, a maior firma de relações públicas internacionais do Japão.

Mas está claro no vídeo de seu discurso em 2014 que Abe consultava um script e mesmo assim às vezes tropeçava em algumas palavras. Abe acompanhou habitualmente seu marido a Washington durante os três primeiros mandatos do primeiro-ministro, e gravações de suas visitas mostram que ela quase sempre usou um tradutor nos EUA.

Em 2015, ela e a então primeira-dama Michelle Obama visitaram uma escola na Virgínia, onde foram recebidas por estudantes que faziam parte do programa de imersão japonesa da escola. Enquanto esteve lá, Abe usou um intérprete e se dirigiu aos estudantes em japonês.

Em discursos em um fórum Womenomics em 2014 e na cúpula Finding Balance em 2015, Abe fez comentários em japonês e um intérprete os traduziu para o público. Ela não falou inglês durante uma entrevista em 2014 ao jornal "The Washington Post".

Abe visitou novamente Washington em fevereiro, quando seu marido se encontrou com Trump na Casa Branca. Apesar de ela ter feito escalas na Universidade Gallaudet e na embaixada japonesa, Abe não fez comentários públicos. Ela e seu marido passaram o fim de semana seguinte com os Trumps em Mar-a-Lago, o clube do presidente perto de Palm Beach, na Flórida.

Várias pessoas entrevistadas por "The Washington Post" disseram que nunca ouviram Abe falar inglês e especularam que ela não ficaria à vontade tendo mais que uma conversa simples.

A maioria das pessoas entrevistadas para esta reportagem falaram sob a condição do anonimato porque não tinham falado com Abe diretamente ou por muito tempo e não tinham conhecimento em primeira mão.

"Eu só a ouvi falar em japonês", disse um especialista em Japão em um grupo de pensadores. "Em reuniões internacionais, ela fala por meio de um intérprete. Eu acredito que ela consiga ter uma conversa de cortesia, mas não se deve supor mais que isso."

Um ex-assessor do presidente Barack Obama disse em uma mensagem de texto que "nunca a ouviu falar inglês com a senhora Obama".

Durante sua visita em 2015 aos EUA, Abe se reuniu com um pequeno grupo de americanas que tinham ensinado inglês no Japão em um programa de intercâmbio patrocinado pelo governo.

Nicole Uehara, uma americana que ajudou a montar o evento e participou dele, disse que Abe não falou inglês durante o encontro e fez comentários por meio de um intérprete, que estava sentado ao lado dela. Uehara disse que foi informada de que a primeira-dama sabe um pouco de inglês, mas não é fluente.

Em eventos multilaterais formais, algumas autoridades estrangeiras se preocupam com o protocolo e temem falar errado quando não se expressam em sua língua nativa, disseram especialistas em política externa.

"Eu realmente não acho que ela entenda inglês muito bem", disse um repórter de televisão japonês em Washington, em um e-mail. Segundo ele, a história não causou muita polêmica no Japão, já que a entrevista de Trump foi publicada no final da quarta-feira.

Um assistente americano na sucursal em Washington de outra rede de televisão japonesa disse que o consenso em seu escritório "é que ela realmente não sabe falar [inglês]. É claro que ela pode dizer 'olá' ou cumprimentar pessoas em inglês, mas manter uma conversa além das amabilidades? Não temos certeza".

Na embaixada japonesa em Washington, um diplomata chamou os comentários de Trump sobre Abe de "uma história estranha" e acrescentou que –embora tivesse visto o vídeo na rede social de Abe recitando o discurso sobre o litoral em inglês– não tinha certeza sobre sua capacidade no idioma.

"Você perguntou a Spicer sobre isso?", indagou ele, referindo-se ao secretário de imprensa da Casa Branca, Sean Spicer, que pediu demissão nesta sexta-feira (21).

Na reunião com a imprensa na quinta, que foi conduzida por Sarah H. Sanders, vice de Spicer e nova titular da secretaria de imprensa, ninguém perguntou.

ANNA FIFIELD colaborou com a reportagem.

Traduzido por LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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