Folha de S. Paulo


Análise

Na Síria, EUA reabilitam sua 'diplomacia do míssil'

Em caso de dúvida, "faça um sujeito entrar no quarto com uma arma na mão". A receita para problemas do enredo, do clássico autor de romances policiais americano Raymond Chandler, foi revisitada por vários presidentes dos EUA —-em caso de dúvida, lance mísseis Tomahawk.

Donald Trump, com seus 59 Tomahawks lançados contra a Síria, é apenas o mais novo membro do clube, iniciado com o lançamento de 288 desses mísseis contra o Iraque na Guerra do Golfo de 1991, quando o presidente era George H. W. Bush (o "Bush pai"), hoje nome de porta-aviões nuclear.

ATAQUE À SÍRIAO míssel Tomahawk
ATAQUE À SÍRIAO míssel Tomahawk

O irônico é que, em declarações anteriores, especialmente na campanha eleitoral, Trump se posicionou contra a intervenção na Síria. O uso de armas químicas pelos sírios foi agora um bom pretexto para entrar em ação. Mas ninguém tem ideia de até onde ele pretende ir. Possivelmente, nem ele.

Seria um mero caso de pressionar sírios e seus aliados russos? Ou Trump pensa em depor o ditador sírio, Bashar al-Assad, como aconteceu com o líbio Muamar Gaddafi? O bombardeio vai continuar tentando "decapitar" a liderança síria? Ou seria o caso de usar forças especiais? Pressão econômica faria parte da receita? Ou o ataque foi apenas uma "punição" pelo uso de armas químicas?

Aquela que é considerada a guerra mais curta da história -entre os britânicos e o sultão de Zanzibar, em 1896- durou só 45 minutos. Foi o tempo usado por cinco navios da Marinha Real para bombardear a ilha, hoje parte da Tanzânia, até a sua rendição. Era a época áurea da "diplomacia das canhoneiras".

Os EUA a reinventaram como a "diplomacia do míssil". Essa arma permite atacar sem risco de perdas.

"O Tomahawk pode ser lançado de um navio ou submarino e pode voar em espaço aéreo fortemente defendido a mais de 1.000 milhas (1.610 quilômetros) de distância para realizar ataques precisos em alvos de alto valor com danos colaterais mínimos. Lançar a arma de uma distância tão longa ajuda a manter os marinheiros fora de perigo", declara a fabricante do míssil, a Raytheon.

Cada um custa hoje em torno de US$ 1,5 milhão. Ou seja, só com os mísseis, o ataque americano custou US$ 88,5 milhões.

Mass Communication Specialist 3rd Class Ford Williams/U.S. Navy via AP
Imagem cedida pela Marinha dos EUA do navio USS Porter lançando um míssil Tomahawk do mar Mediterrâneo em direção à Síria
Imagem cedida pela Marinha dos EUA do navio USS Porter lançando um míssil Tomahawk do mar Mediterrâneo em direção à Síria

Mais de 2.000 destes "acessórios de política externa" já foram lançados; os EUA têm mais de 3.000 Tomahawks disponíveis. O sistema de guiagem, comando e controle do míssil foi aperfeiçoado. Hoje ele conta com GPS para acertar o alvo com precisão.

O Iraque voltou a ser alvo de Tomahawks -nome de um machado de guerra indígena- em 1993, 1996 e 1998. Em 1995 os alvos estavam em território da Bósnia ocupado por sérvios. Montenegro e Sérvia foram alvos em 1999.

Em 1998 os mísseis foram enviados contra alvos no Afeganistão e no Sudão como retaliação por ataques terroristas da Al Qaeda na África. O presidente era Bill Clinton, então envolvido em escândalo sexual.
Coincidentemente, no ano anterior tinha sido lançado um filme -"Wag the Dog" (no Brasil, "Mera Coincidência")- no qual um presidente dos EUA também envolvido em escândalo sexual iniciava uma guerra para distrair o eleitorado.

As intervenções no Afeganistão (2001) e Iraque (2003) também tiveram sua cota deste versátil míssil. A Somália foi alvo em 2008.

O democrata Barack Obama também usou sua cota de Tomahawks contra alvos no Iêmen (2009 e 2016), Líbia (2011) e Síria (2014).

O fato de ter evitado causar baixas entre o pessoal russo na Síria pode sinalizar que Trump e sua equipe querem minimizar o risco de conflito direto com o presidente russo, Vladimir Putin.

Mas a linguagem imprecisa, o comportamento errático, a necessidade de posar de machão que não leva desaforo para casa, tudo isso pode tornar a situação altamente volátil -tanto da parte do americano, como do russo (é provável que o sírio esteja mais preocupado em sobreviver do que em retaliar).

No Oriente Médio, nunca ninguém que aposta no pior costuma perder. A coisa pode piorar. E rápido. E quem sabe, mais rápido do que você pensa.


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