Charles Darwin não conseguia acreditar que um Deus bondoso pudesse criar uma vespa parasita que injeta seus ovos no corpo de uma lagarta para que a larva possa consumir a hospedeira viva.
A vespa da família Ichneumonidae desafiou a fé de Darwin, que já estava minguando. Podemos compartilhar sua perplexidade hoje, quando contemplamos o organismo político americano e a coisa repulsiva que se aninhou em seu interior, esperando o momento de eclodir e começar a fazer sua refeição.
A descrença atônita, uma condição à qual estamos começando a nos acostumar, é uma forma de negação que some rapidamente, mas não de modo suave. Ela desaparece em passos: dois passos para frente, um para trás. Mas até o dia da posse presidencial, em 20 de janeiro, já articularemos as palavras "presidente Trump" sem incredulidade ou gargalhadas.
O perigo é que comece a parecer normal essa tragédia singular de automutilação nacional em que um suspeito embusteiro (a ação judicial contra a Trump University, uma entre muitas, começará a ser julgada em 28 de novembro), essa pessoa vulgar, narcisista e cínica, dotada de intervalo de atenção limitado, se tornará o homem mais poderoso do mundo.
Trump está preparado, segundo ele próprio diz, a deslanchar seu ataque à democracia liberal, ao discurso racional, a toda espécie de decências civis, descritas por ele como correção política.
Haverá comentaristas e asseclas ansiosos para nos persuadir de que a nova situação é aceitável. Mas a disputa pela Presidência demorou demais e revelou demais para poder ser esquecida.
É do governador de Nova York, Mario Cuomo, uma frase que ficou famosa: "Faz-se campanha em poesia, governa-se em prosa". Bem colocado. Se é verdade, então a poesia de Trump foi misoginia, ódio racial, xenofobia, mesquinha sede de vingança, ignorância insensata.
Praticamente não houve um único impulso humano tenebroso que ele deixou de revelar ou explorar quando fez campanha.
E, se essa foi a poesia, o que podemos esperar do gênero menor, a prosa? Se por acaso Trump falou a sério (seus partidários estarão de olho), será um governo feito de fogueira no qual serão atirados o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, o arduamente negociado pacto nuclear com o Irã e acordos comerciais diversos.
Ele terá de pressionar a Arábia Saudita e o Japão a se dotarem de armas nucleares; terá de enfraquecer o aspecto atual de assistência da "obsoleta" Otan, com isso criando o risco de uma incursão russa nos países bálticos; terá de aniquilar famílias de terroristas; iniciar uma guerra comercial com a China, por meio de um protecionismo desacreditado; restaurar a tortura como braço da política externa; construir um muro de 3.200 quilômetros de extensão ao longo da fronteira mexicana, barrar a entrada de muçulmanos no país e elevar muito os gastos militares.
E, no âmbito interno: sobretudo, "trancafiar" sua adversária, conforme o prometido em mil comícios eleitorais; perseguir jornais hostis; atacar as mulheres que o acusaram de assédio sexual; reduzir os impostos, especialmente para os super-ricos; abolir a reforma da saúde promovida por Obama e deixar 24 milhões de pessoas sem cobertura médica; "gerar" 20 milhões de empregos em dez anos; jogar por terra os regulamentos ambientais; relançar a indústria do carvão; deportar imigrantes ilegais aos milhões; lotar a Suprema Corte de conservadores ideológicos, à medida que forem surgindo vagas.
É deveras prosaico, e, esperemos, boa parte disso pode ter sido meras promessas de campanha, impossíveis de cumprir. Mas é essa a mentalidade, e este será um presidente com poder tremendo sob seu comando,
com a Câmara e o Senado.
O Tea Party –a facção João Batista de Trump–, nos tempos de Obama tão altiva em relação aos empréstimos contraídos pelo governo, descobrirá que já não se importa mais tanto com a dívida. E, em torno de nós, não americanos, a ordem mundial vai obrigatoriamente começar a mudar. Estaremos ingressando na Era do Tirano?
A América se vê diante da possibilidade de acrescentar o nome de seu líder aos de Putin, Xi Jinping, Assad, Sissi, Erdogan, Netanyahu, Duterte, Nazarbayev, Lukashenko... Uma vergonha, mas algo inteiramente possível com um presidente que tão ostensivamente despreza ou ignora a história constitucional de seu país e sua tradição de liberdade de expressão.
O mundo depositará sua esperança na força das instituições democráticas americanas e no bálsamo dos conselhos sensatos, se bem que o mundo visto por Newt Gingrich [um dos principais aliados de Trump] não seja uma perspectiva tranquilizadora.
Enquanto isso, há algumas lições difíceis a serem aprendidas. A chamada "maré populista" comum à Europa, além dos Estados Unidos, apresenta à esquerda democrática um problema singular, um círculo que esta ainda não conseguiu quadrar.
Os seguidores tradicionais da esquerda estão se afastando dela. Assistimos a uma revolta de cidadãos contra a globalização e ambições multiculturais de elites. É uma crise de identidade, um sentimento da classe trabalhadora de ter sido traída.
As preocupações com as portas abertas dos países foram desprezadas facilmente demais como sendo estupidamente patrióticas, ignorantes ou racistas. Com isso, deixou-se o espaço eleitoral aberto para a direita demagoga, para sites conspiratórios.
É um problema que, no Reino Unido, o Partido Trabalhista, sob o comando de Jeremy Corbyn, ainda não encarou -e que é singularmente difícil. É mais provável que existam mil respostas pequenas ao problema que uma só solução grandiosa.
Abolir as escolas religiosas no Reino Unido que segregam nossas crianças de maneira prejudicial constituiria um pequeno passo. A experiência americana, além do próprio plebiscito britânico sobre a UE, demonstraram um paradoxo familiar: são as comunidades mais rurais, completamente brancas, que mais temem a imigração, enquanto as metropolitanas e miscigenadas a temem menos. A familiaridade não gera o pouco-caso.
Daqui a pouco o novo presidente americano estará drenando o pântano de Washington, aquele que se mostrou apropriadamente generoso, tanto no discurso de aceitação de Hillary Clinton quanto na acolhida que os Obama deram a Trump e sua mulher na Casa Branca.
O presidente em fim de mandato, a primeira-dama e a candidata democrata derrotada, todos compreendem a importância de uma transição ordeira. Trump, se tivesse sido derrotado, não teria de longe sido igualmente maduro; tinha ameaçado declarar a eleição fraudada, cegamente correndo o risco de agitação perigosíssima. Ele é uma criança ignorante e mal-humorada, estranhamente promovida para uma posição superior à dos adultos.
É bem possível que seja contido por assessores sábios, restrições constitucionais e realidades práticas, mas a preocupação continua a ser o caráter. Haverá crises, e ele terá de lidar com elas. Ele não parece ter capacidade, nem sequer ser estável.
Apesar de suas falhas, o processo eleitoral americano põe os candidatos sob pressão para revelarem seu eu interior. Os comentaristas se voltaram ao respeitado manual de doenças mentais, o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), para tentar definir o transtorno de Trump. Narcisismo maligno? Transtorno de personalidade limítrofe? Ou, como propôs Christopher Buckley, transtorno de personalidade limítrofe mexicana?
A esperança é que Trump tenha mentido aos partidários em seus comícios, mas, se por algum azar maldito ele conseguir realmente governar como fez campanha, quando se projetou como autocrata e misógino, intolerante de qualquer dissensão, indiferente aos limites presidenciais, ansioso por autorizar a tortura, racialmente hostil, então teremos que reconhecer que os EUA elevaram para seu cargo mais alto um fascista que se faz passar por qualquer outro nome.
No momento, soa improvável. Mas será apavorante.
IAN MCEWAN, 68, é britânico e autor de 'Reparação' e 'Amsterdã', entre outros
© Ian McEwan 2016
Publicado pela primeira vez no jornal "The Guardian"
Tradução de CLARA ALLAIN