Folha de S. Paulo


Incêndios causados pelo Estado Islâmico tomam cidade iraquiana

É um cenário apocalíptico. A densa coluna de fumaça que sai dos campos de petróleo em chamas raramente permite que a luz do sol chegue com toda a sua força às ruas negras e esburacadas de Qayyara.

Na pequena cidade às margens do rio Tigre, distante pouco mais de 60 km de Mossul, a sensação é de se estar em um permanente crepúsculo. Até a temperatura aqui é diferente. Sem os raios solares, Qayyara está sempre uns cinco graus mais fria que as cidades vizinhas.

Os cerca de 13 mil moradores vivem nesta espécie de redoma de fumaça tóxica há quase dois meses, quando os militantes do Estado Islâmico explodiram e incendiaram 19 campos de petróleo no entorno da cidade.

No fim de outubro, dias antes da chegada das Forças Armadas do Iraque, os terroristas explodiram o único poço que ficava na área urbana de Qayyara, exatamente ao lado do hospital da cidade, destruído durante a batalha. Em retirada, eles ainda incendiaram uma fábrica de dióxido de enxofre.

A constante coluna de fumaça segue o rumo dos ventos que sopram constantemente do norte em direção ao sul nesta região do deserto de Nínive, fazendo com que a cidade fique quase sempre completamente encoberta.

Mas o pior, dizem os moradores, é durante a noite, quando o vento para, e a fumaça fica estacionada. "Parece que não adianta tomar banho ou limpar as roupas", diz Muhamed Said, 18, que vive a menos de uma quadra do poço em chamas ao lado do antigo hospital.

"Quando acordamos, estamos sujos, as roupas estão sujas, e uma coisa preta sai do nariz quando vamos nos limpar", diz ele, que está com a irmã de 4 anos doente.

Apesar de o EI ter ateado fogo nos campos na tentativa de impedir ataques aéreos americanos, as maiores vítimas dessa guerra química são os civis que vivem aqui.

Desde o último mês, o número de casos de problemas respiratórios explodiu na pequena cidade, que até a chegada do Exército contava apenas com um médico. É quase impossível encontrar uma casa em Qayyara em que não haja ao menos um doente.

Hoje a cidade conta apenas com uma clínica. Ela é comandada pelo cardiologista Ali Faraji, 42, que passou os últimos dois anos e meio vivendo sob o jugo do EI. Ele, que é de Mossul, tentou fugir, mas não teve sucesso.

"Quando cheguei mais perto, me enviaram uma mensagem dizendo que iriam matar toda a minha família. Desisti". Faraji conta que diariamente recebe cerca de 260 pacientes na clínica. Agora conta com a ajuda de outros nove médicos. Ainda assim, diz ele, a situação é dramática.

"São as crianças que mais sofrem, principalmente no aparelho respiratório superior", diz. "Os casos de bronquite e asma se multiplicam, e a longo prazo a chance de essas crianças desenvolverem problemas crônicos, como enfisema ou mesmo um carcinoma de pulmão, vão aumentando dia a dia."

Faraji e seus colegas não têm muito o que fazer além de nebulização, oferecer oxigênio aos casos mais graves e receitar anti-inflamatórios e broncodilatadores.

A estimativa é de que esteja sendo queimados o equivalente a até 10 mil barris de petróleo por dia. Por enquanto, ninguém sabe ao certo como o fogo será extinto. Grupos de bombeiros têm tentado soluções paliativas para reduzir a coluna de fumaça em Qayyara.

O taxista Bassem Raadi, 40, a acompanha diariamente. Ele vive exatamente em frente ao poço. Do alto de sua laje, observa com atenção a direção do vento. Se houver alguma mudança, corre para fechar todas as janelas e retirar a roupa do varal.

Mas, mesmo com todo o esforço, sua casa está tomada por uma espessa camada de pó preto e grudento que desce junto com a fumaça. "Em algumas partes da casa simplesmente desistimos de limpar. Minhas duas filhas mais novas estão doentes, com febre e sem conseguir respirar bem", conta ele.

SEM ALTERNATIVA

Raadi, assim como a maior parte dos moradores de Qayyara, continua a viver nesse ambiente opressivo e extremamente poluído porque tem poucas alternativas.

Como a cidade ficou sob o domínio do EI por mais de dois anos, eles têm dificuldade de conseguir permissão do Exército iraquiano para ir a outra região do Iraque.

Uma opção seriam os campos de refugiados, algo que nem ele e praticamente ninguém por aqui pensa em fazer, ao menos nesse momento. "Não temos para onde ir, o que vamos fazer? Não posso deixar minha casa. E tenho família apenas em Mossul, onde está a guerra.", conta, ao lado da filha.

A cidade ainda vive sob tensão. Há uma caça às bruxas aos suspeitos de terem apoiado os militantes do EI, e execuções têm sido comuns por aqui. Na manhã de sexta-feira (11), dois corpos apareceram nos arredores da cidade ao amanhecer, ambos com sinais claros de execução.

Esta não é a primeira vez que o Iraque vê reservas de petróleo virarem armas de guerra. Em 1991, ao deixar o Kuait, Saddam Hussein incendiou ao menos 600 campos de petróleo. Foram necessários mais de 10 meses para que o fogo fosse extinto. Em Qayyara, por enquanto, ninguém sabe quando o dia enfim deixará de ser noite.


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