Folha de S. Paulo


Teste nuclear como garantia da paz move discurso da Coreia do Norte

"Não queremos a guerra, quem quer a guerra catastrófica? Mas não temos medo da guerra", diz com voz calma e modos gentis a professora norte-coreana de filosofia Ri Jong Hwa, 50. "Dizemos que estamos prontos para a guerra e para a paz."

Ri, que atuou como intérprete da Folha durante a estada de uma semana no país, até a última terça-feira (20), afirma estar pronta ideologicamente para defender sua nação em caso de ameaça: "Apesar da minha idade, até eu estou preparada para combater o inimigo".

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O discurso oficial, repetido sem variações, é que, como teria sido demonstrado pelo quinto teste nuclear da Coreia do Norte, realizado no dia 9 deste mês sob críticas da comunidade internacional, o país se colocou em equilíbrio de forças com nações ditas "imperialistas".

Só assim, argumenta o regime, é possível garantir a paz na península coreana, dividida desde a década de 1940 e que estaria sob constante ameaça externa. Segundo o regime, a bomba teve seu tamanho reduzido e seu alcance potencializado.

"Nosso país tem forças militares poderosas, então o destino do nosso povo está garantido, e eles vivem uma vida pacífica e estável. Eu mesmo vivo uma vida pacífica e estável", afirma Kim Chang Gyong, professor da Faculdade de Ciências Sociais em Pyongyang e integrante da Kass (associação coreana de cientistas sociais).

A Folha obteve visto para ir à Coreia do Norte após ser convidada e ter parte das despesas pagas pela Kass, que tem como uma de suas funções propagandear a estrangeiros as ideologias nacionais. Ri, que dá aulas na Universidade Kim Il-sung, também é funcionária da Kass.

O trauma vivido pelo país durante o domínio japonês (1910-1945) é revisitado com frequência na construção da ideologia militarista, reforçado diariamente pela TV, pelos filmes nacionais e por grandes monumentos. Nesse período, a cultura coreana foi marginalizada e a economia funcionava em benefício do regime imperial em Tóquio.

Duas ideias básicas constroem o discurso norte-coreano: autossuficiência do homem e da nação (segundo a teoria juche, ideologia oficial do país) e forças militares em primeiro lugar (Songun), ambas atribuídas ao primeiro dos três ditadores da família Kim, Kim Il-sung (1912-1994), "o eterno presidente", e reforçadas pelos sucessores, seu filho e seu neto.

"A paz no Nordeste da Ásia está garantida pela política Songun e nossas forças nucleares poderosas", comenta o professor Kim.

O diplomata Roberto Colin, embaixador do Brasil no país entre 2012 e 2016, diz que a lógica dos discursos, mais que ideológica, é a sobrevivência do regime e do grupo que está no poder. "A justificativa é essa [o discurso com base nas ideologias nacionais], mas há um entendimento de observadores de que trata-se de um discurso social."

Apesar de o regime pregar que o foco dos esforços é a paz, parte significativa da comunidade internacional, incluindo a vizinha do Sul, vê uma ameaça militar relevante, sobretudo no último teste nuclear —em que os norte-coreanos alegaram ser capazes de lançar ogivas nucleares a grandes distâncias.

Mesmo sem ter certeza da tecnologia que, de fato, o país conseguiu desenvolver, a comunidade internacional se preocupa com a potência do teste —o mais forte até aqui.

A repórter viajou a convite da Kass (associação coreana de cientistas sociais).

Editoria de Arte/Folhapress

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