Folha de S. Paulo


Criminalidade cria desafios para ação humanitária na América Latina

Em qualquer esquina dos bairros pobres da capital de El Salvador, é comum ver um adolescente, membro de uma gangue, controlando o território: montando guarda, com celular na mão, checando as pessoas e os carros que entram e saem.

A violência de gangues é uma praga que assola El Salvador há décadas. Distritos inteiros da cidade estão sob o controle das duas gangues mais poderosas, Barrio 18 e sua rival Mara Salvatrucha, que utilizam violência sexual, extorsão e ameaças de morte para consolidar seu domínio das comunidades.

Ulises Rodriguez/Reuters
Membros detidos de gangue que atua no bairro Mara Salvatrucha, de El Salvador
Membros detidos de gangue que atua no bairro Mara Salvatrucha, de El Salvador

As guerras entre gangues, incluindo tiroteios, e a violência que as acompanha já são o maior desafio enfrentado pelas agências humanitárias que trabalham em favelas em partes da América Latina.

O Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos divulgou este mês que até dezembro de 2015 a violência criminal ligada ao narcotráfico e à atividade de gangues já tinha provocado o deslocamento de pelo menos 1 milhão de pessoas em El Salvador, Guatemala, Honduras e México.

"Vivemos uma crise humanitária que é fruto da violência. As gangues criam o terror e vivem em comunidades paralisadas pelo medo", disse à Thomson Reuters Foundation o diretor em El Salvador do grupo de defesa dos direitos das crianças Plan International, Rodrigo Bustos. "Nossos programas não podem seguir adiante como se estivesse tudo normal."

DESAFIOS URBANOS

Uma questão chave a ser discutida na primeira Cúpula Humanitária Mundial, nesta semana, será a necessidade de as organizações humanitárias se adaptarem às realidades sempre em transformação das cidades crescentes do mundo em desenvolvimento.

Para encontrar maneiras melhores de responder a enchentes, terremotos, violência armada, migrações e outros problemas nas cidades, será lançada na cúpula a Aliança Global para as Crises Urbanas, reunindo órgãos da ONU, grupos humanitários internacionais, o setor privado e pesquisadores.

Em El Salvador, por exemplo, algumas entidades estão sendo forçadas a reduzir seu trabalho em áreas controladas por gangues. Outras, como a entidade americana Peace Corps, suspenderam seus trabalhos por completo.

Jose Cabezas/Reuters
Soldados fazem segurança no bairro dominado por violência em El Salvador
Soldados fazem segurança no bairro dominado por violência em El Salvador

"Damos atendimento médico a todos, e sabemos que é possível que estejamos atendendo uma esposa ou namorada de um 'mara' (membro de gangue)", disse Henry Rodriguez, que dirige a missão da organização Médicos Sem Fronteiras em Honduras e no México.

"Quando o ambiente em um bairro está muito tenso, nós nos afastamos por alguns dias. Quando a situação se acalma, voltamos."

Conquistar a confiança e aceitação dos moradores locais, que envolve dialogar com líderes religiosos e comunitários, é crucial, mas pode levar anos. A maioria das organizações humanitárias precisa negociar com as gangues para receber autorização de entrar e trabalhar nas áreas sob o controle delas.

SEM PREPARO

Dar atendimento médico e prestar outros serviços essenciais a comunidades faveladas em condições urbanas de risco é um desafio que, segundo especialistas, muitas entidades humanitárias -que tradicionalmente sempre atuaram na zona rural-ainda não estão equipadas para enfrentar.

Mas é cada vez mais urgente fazê-lo, disse John de Boer, assessor sênior do Centro de Pesquisas de Políticas da Universidade das Nações Unidas. O problema não se limita à América Latina: afeta cidades da República Centro-Africana à Jamaica e ao Iraque.

"Existem vários lugares onde esse tipo de forma alternativa de governança criminal deitou raízes, criando problemas humanitários tremendos -e, em alguns casos, lucrando com eles", disse De Boer.

As quadrilhas do crime organizado também podem exercer efeitos ocultos sobre o trabalho humanitário -por exemplo, fornecendo materiais de construção para diques contra enchentes ou pressionando as pessoas a apoiar determinados projetos.

"Muito de nosso trabalho não é a prova da criminalidade", falou De Boer. "Se você não entra nesses contextos já tendo uma ideia muito boa de como funciona o impacto dos grupos ilícitos, pode suscitar problemas enormes mais para frente."

Ele disse que as cidades mais frágeis são as que sofrem o efeito de um misto nocivo de violência, desigualdade, desastres naturais e pobreza. Muitas delas não têm governos municipais capazes de resolver esses problemas.

Estima-se que 95% da expansão urbana futura - boa parte dela rápida e não planejada-se dará em países de baixa e média renda. Para Pamela Sitko, assessora técnica de controle de desastres urbanos junto à entidade World Vision International, as agências humanitárias terão, cada vez mais, que reagir a crises em cidades.

"Já é tarde demais para o setor humanitário se adiantar à curva da urbanização, mas podemos alcançá-la", disse Sitko. "Precisamos adaptar nossas ferramentas, abordagens e modos de formar parcerias."

GOVERNOS LOCAIS

Uma das principais diferenças é que os humanitaristas terão que cooperar muito mais estreitamente com os administradores urbanos -prefeitos, urbanistas, arquitetos e empresas de água e luz.

Em áreas urbanas atingidas por desastres, a melhor abordagem muitas vezes consiste em não levar suprimentos emergenciais. "Nas cidades, não levamos ajuda à população. O que precisamos fazer é facilitar o acesso à ajuda. Por exemplo, não temos que transportar caminhões de alimentos para a população, mas ajudar a colocar os mercados e feiras em funcionamento", disse Sitko.

Dan Lewis, diretor da unidade de redução de riscos urbanos da UM-Habitat, disse que o sistema humanitário está aprendendo pouco a pouco com os erros cometidos em desastres anteriores que atingiram cidades.

Um exemplo desse tipo de desastre foi o terremoto de 2010 no Haiti, quando milhares de moradores de Porto Príncipe que ficaram sem-teto foram transferidos para um acampamento fora da capital, com poucos serviços e sem acesso a trabalho.

NOVA ALIANÇA

Em muitas crises -desde o tsunami no oceano Índico até o tufão Haiyan, que achatou a cidade filipina de Tacloban–, as entidades humanitárias correram para ajudar, sem consultar os governos locais.

A nova aliança global quer retificar essa falha.

Especialistas em trabalho humanitário dizem que a cooperação com autoridades municipais e empresas é cada vez mais importante para responder a crises de refugiados como a do Oriente Médio, onde a maioria dos 5 milhões de sírios que fugiram de seu país em guerra estão vivendo em cidades do Líbano, Jordânia e Turquia.

O fato de eles terem se dispersado entre as comunidades de acolhida faz com que seja mais difícil para as agências humanitárias chegar até as famílias e lhes oferecer o apoio de que precisam para pagar aluguel, comprar alimentos e acessar escolas e saúde.

Isso requer inovação. A World Vision, por exemplo, tem um projeto no vale do Bekaa, no Líbano, que dá a jovens sírios e libaneses experiência na gestão de dejetos sólidos e na reciclagem de materiais. O projeto promove a aproximação entre os jovens e lhes ensina habilidades, além de beneficiar a saúde pública local e a infraestrutura municipal.

"É preciso atender todos os grupos diferentes", disse Aline Rahbany, assessora de programação urbana da World Vision. "Se você só ajudar um grupo, isso pode acabar sendo prejudicial, por gerar mais tensões sociais e conflitos na cidade."

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página: