Folha de S. Paulo


O amor iraquiano sobrevive em tempos de Estado Islâmico

Bagdá está cheia de corações e rosas para lembrar o Dia dos Namorados, e Nour e Ahmed, que acabam de ficar noivos, passeiam curtindo um raro momento de calmaria em meio à violência na capital iraquiana. Eles se perguntam, contudo, quanto tempo isso deve durar.

Apesar de ter sofrido reveses recentes, a facção terrorista Estado Islâmico (EI) ainda está entrincheirado a 60 quilômetros de Bagdá.

Milícias xiitas que combatem o EI hoje controlam a segurança em muitas partes da cidade, garantindo proteção adicional mas também gerando um certo receio, já que os combatentes fortemente armados muitas vezes atuam fora do controle do governo.

A situação é melhor do que era um ano atrás, quando Nour e Ahmed se conheceram, trabalhando na mesma revista. Depois de uma conversa no Facebook, começaram a sair com amigos à noite e nos fins de semana.

"É claro que, em épocas de segurança ruim, eu jamais a teria chamado para me encontrar em um restaurante", falou Ahmed. "Teria ficado preocupado demais", completou, sorrindo e buscando a mão de Nour.

Os dois pediram que seus nomes completos não fossem publicados por temerem por sua segurança. Eles não são muito religiosos, mas Nour é de família xiita, enquanto a família de Ahmed é sunita.

Relacionamentos como o deles eram comuns antes da invasão de 2003 liderada pelos EUA, mas se tornaram mais raros desde então, especialmente depois dos combates sectários sangrentos que sacudiram o país em 2006 e 2007.

Ahmed e Nour dizem que ainda não tiveram problemas devidos a seu romance improvável, mas que têm medo do poder crescente de figuras religiosas na vida iraquiana, incluindo as milícias xiitas.

As milícias, muitas delas treinadas e armadas pelo Irã, foram reconstituídas no verão de 2014 após o Exército iraquiano ter sido debilitado diante do avanço relâmpago do sunita Estado Islâmico no norte e oeste do país.

Elas vêm exercendo um papel crucial em garantir a segurança da capital e reconquistar áreas do controle dos extremistas, mas grupos de defesa dos direitos humanos as acusam de lançar ataques contra sunitas.

Em Bagdá, as milícias xiitas já foram acusadas de cometer sequestros para pedidos de resgate e de lançar ataques de motivação religiosa contra boates e lojas de bebidas.

Nour e Ahmed dizem que o que mais os preocupa é o grande número de grupos armados no país e o pouco controle que o governo parece exercer sobre eles.

"O futuro?", falou Nour. "É negro. Não há futuro no Iraque."

Em público, Nour cobre os cabelos com um lenço, mas também usa roupas de estilo ocidental e gosta de ir ao cinema e a restaurantes, coisas que ela teme ser obrigada a abandonar à medida que cresce o poder dos líderes religiosos e das milícias.

Muhanad al-Akabi, porta-voz das Forças de Mobilização Popular, grupo que agrupa a maioria das milícias, disse que os civis iraquianos não têm razões de temer esses grupos.

"Somos uma instituição formal, pertencemos ao governo", explicou. Ele reconheceu que seus combatentes já cometeram erros no passado, mas os atribuiu à inexperiência de qualquer força de combate nova. Ainda acrescentou que isso acontece em todo lugar, com qualquer força militar.

Segundo ele, os civis terão menos razões para se preocupar à medida que as milícias ganharem experiência.

Akabi e outras autoridades iraquianas estão mais preocupados com o Estado Islâmico, que ainda consegue enviar bombas a Bagdá e pode voltar a intensificar seus ataques contra civis para compensar suas derrotas no campo de batalha.

No início do mês, autoridades de segurança disseram que foram iniciadas as obras de construção de uma barreira em volta de Bagdá que se espera que possa reduzir o número de ataques de militantes e permitir a remoção de postos de controle dentro da cidade, que atrapalham o trânsito.

O general Saad Maan, porta-voz do Ministério do Interior, disse que a barreira vai combinar postos de controle reforçados, trincheiras e muros resistentes a explosões ao longo de um anel de 280 quilômetros de extensão em volta da cidade.

A barreira talvez impeça a entrada de alguns extremistas religiosos, mas Ahmed teme que ela possa impedir a saída de outros.

"Já temos tão pouca liberdade, comparados aos nossos pais", disse, aludindo à década de 1970 no Iraque, antes de décadas de guerra e sanções. "Se estes políticos religiosos continuarem no poder, vamos ter cada vez menos."

Tradução de CLARA ALLAIN


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