Folha de S. Paulo


Derrubada de caça russo pode ser fruto de frustração velada da Turquia

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Avião russo é abatido e cai na Síria

Turquia e Rússia prometeram na quarta-feira (25) não entrar em guerra devido à derrubada de um caça russo, deixando os aliados turcos da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), ainda tensos, e praticamente todo o mundo se perguntando por que o país decidiu correr o risco de um confronto tão grave.

A resposta do governo turco até agora vem sendo constante: "Não digam que não os avisamos".

Embora violações pequenas de espaço aéreo sejam relativamente comuns e normalmente sejam toleradas, a Turquia tinha telefonado repetidas vezes ao embaixador russo para se queixar dessas violações e de bombardeios russos na Síria, perto da fronteira turca. O presidente Recep Tayyip Erdogan disse na noite de terça-feira (24) –e um porta-voz do Pentágono confirmou mais tarde– que, antes de um F-16 turco abater o jato russo Su-24, as forças turcas avisaram o avião russo dez vezes em cinco minutos que devia se afastar.

Reuters
A war plane crashes in flames in a mountainous area in northern Syria after it was shot down by Turkish fighter jets near the Turkish-Syrian border November 24, 2015. Turkish fighter jets shot down a Russian-made warplane near the Syrian border on Tuesday after repeatedly warning it over air space violations, Turkish officials said, but Moscow said it could prove the jet had not left Syrian air space. Turkish presidential sources said the warplane was a Russian-made SU-24. The Turkish military, which did not confirm the plane's origin, said it had been warned 10 times in the space of five minutes about violating Turkish airspace. Russia's defence ministry said one of its fighter jets had been downed in Syria, apparently after coming under fire from the ground, but said it could prove the plane was over Syria for the duration of its flight, Interfax news agency reported. REUTERS/Sadettin Molla ATTENTION EDITORS - FOR EDITORIAL USE ONLY. NOT FOR SALE FOR MARKETING OR ADVERTISING CAMPAIGNS. NO RESALES. NO ARCHIVE TPX IMAGES OF THE DAY ORG XMIT: IST01R
O jato russo SU-24 cai na área de fronteira entre a Turquia e a Síria após ser abatido

"Pessoalmente, eu já estava prevendo algo assim, porque nos últimos meses houve muitos incidentes como esse", disse em entrevista Ismail Demir, subsecretário de Defesa Nacional da Turquia. "Nossas regras de engajamento são muito claras, e qualquer nação soberana tem o direito de defender seu espaço aéreo."

Isso pode ser verdade, mas analistas disseram que Erdogan teve várias razões mais nuançadas para permitir que pilotos turcos abrissem fogo contra o aparelho russo. Entre elas figuram a frustração do presidente com a Rússia em função de diversas questões que ultrapassam até mesmo a Síria, o nó górdio de definir o que fazer com a própria Síria, e os fortes vínculos étnicos da Turquia com os vilarejos turcomenos que a Rússia vem bombardeando recentemente na região em que seu jato foi derrubado.

A Turquia está furiosa em silêncio desde que a Rússia iniciou operações militares contra rebeldes sírios, dois meses atrás, destruindo a política de Ancara de depor o governo do presidente Bashar al-Assad. Os turcos foram forçados a reduzir suas ambições, de depor Assad a simplesmente conservar um lugar à mesa de negociações quando a hora delas chegar, disse Soner Cagaptay, analista turco do Instituto Washington de Política do Oriente Médio, um grupo de pesquisas não partidário.

"Isso exigiria que rebeldes apoiados pela Turquia estivessem presentes na Síria, e acho que a Turquia ficou alarmada porque o bombardeio russo de posições de rebeldes apoiados pela Turquia no norte da Síria estava prejudicando as posições deles e, desse modo, os interesses futuros da Turquia na Síria", disse Cagaptay. "Assim, o que houve foi também uma postura agressiva da Turquia na guerra civil síria, para prevenir a derrota de rebeldes apoiados pela Turquia, para que eles possam conservar seu território e ter voz no futuro da Síria."

Mas o destino dos rebeldes específicos que os russos estavam bombardeando na região montanhosa de Bayirbucak, onde o avião foi derrubado, não é apenas uma questão política para os turcos. Erdogan, em especial, destacou o vínculo étnico em discurso que proferiu na noite de terça-feira, dizendo: "Condenamos inequivocamente ataques contra áreas habitadas por turcomenos de Bayirbucak. Temos nossos parentes lá."

O primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu, disse o mesmo na quarta-feira, quando rejeitou a explicação apresentada pela Rússia, segundo a qual ela estava combatendo um inimigo comum, o Estado Islâmico. Ele disse:" Ninguém pode legitimar ataques contra turcomenos na Síria com o pretexto de combater o Estado Islâmico".

De acordo com Cagaptay, os bombardeios estavam criando problemas políticos para Erdogan. "Nos dias que antecederam o incidente, muitos jornais, especialmente os jornais pró-governo, publicaram manchetes destacando o sofrimento dos turcomenos, estreitamente aparentados com os turcos anatólios", ele disse. "Acho que o governo sentiu que precisava fazer alguma coisa, em termos de política doméstica, para aliviar um pouco da pressão gerada pelos bombardeios russos de turcomenos no norte da Síria."

Os bombardeios russos de vilarejos turcomenos iam ser a questão principal levantada pela Turquia com o chanceler russo, Serguei V. Lavrov, em discussões que estavam marcadas para a quarta-feira, mas foram canceladas após a derrubada do avião.

A ênfase de Erdogan sobre a ajuda aos turcomenos possui outra dimensão política importante na Turquia. O partido político do presidente enfatizou a identidade étnica turca e a religião muçulmana sunita na campanha que antecedeu as eleições críticas de 1º de setembro, nas quais competiu com um partido rival composto em grande parte pela minoria curda da Turquia e outro comprometido com a preservação do status da Turquia de sociedade e Estado secular.

Erdogan conquistou uma vitória importante nessa eleição, conservando suas chances de conseguir aprovação legislativa para modificar a Constituição e converter o sistema parlamentar do país em sistema presidencialista.

Para complicar a questão ainda mais, Turquia e Síria têm uma disputa fronteiriça de longa data exatamente na área onde foi derrubado o avião russo, um Sukhoi Su-24, e a Rússia em algumas ocasiões já se manifestou a favor da posição síria. A disputa diz respeito a uma faixa estreita de território, a província turca de Hatay, que avança para o sul, margeando o mar Mediterrâneo, e penetra na Síria.

A província é um caldeirão de turcos e árabes étnicos. É também um caldeirão religioso, com muitos habitantes muçulmanos, mas também uma grande população cristã, já que Hatay abrange a cidade bíblica de Antioquia. E a história da província envolve muitos conflitos.

Depois da Primeira Guerra Mundial, a Liga de Nações deu a província de Hatay à França, como parte do mandato legal da França sobre a Síria. Turcos étnicos lideraram a secessão da província da Síria e em 1938 a declararam uma república independente. No ano seguinte, essa república se uniu à Turquia, passando a fazer parte dela –mais ou menos como o Texas se separou do México, um século antes, tornou-se uma república e depois ingressou nos Estados Unidos.

Ao longo dos anos a Síria vem questionando periodicamente a perda de Hatay. "Se você olhar para mapas sírios, aquela província é mostrada como parte da Síria", comentou Altay Atli, especialista em relações internacionais da Universidade Bogazici.

Quando Hatay se separou do mandato francês da Síria, as fronteiras de Hatay não abrangiam toda a população étnica turca na região; muitos turcomenos permaneceram do outro lado da fronteira, na região que hoje é o norte da Síria. Durante décadas, pessoas das famílias divididas pela secessão de Hatay entre os dois lados da fronteira tinham dificuldade até mesmo em visitar umas às outras. As tensões finalmente começaram a diminuir nos anos imediatamente anteriores à Primavera Árabe, mas voltaram a crescer nos últimos anos, quando a Turquia passou a liderar chamados pelo afastamento de Assad.

O fato de que a Rússia ao longo dos anos vem expressando apoio à reivindicação síria de controle sobre Hatay torna a província uma questão ainda mais delicada para a Turquia e torna ainda mais importante o incidente da terça-feira com o jato russo, disse James F. Jeffrey, ex-embaixador dos EUA na Turquia e atual membro do Instituto Washington para a Política do Oriente Médio.

Jeffrey perguntou se o jato russo penetrou no espaço aéreo da província de Hatay acidentalmente ou se, devido à história complicada da província, a Rússia pode ter permitido intencionalmente as incursões de seus jatos durante suas atividades militares na Síria.

"A Turquia estava cansada de ser intimidada pela Rússia", ele disse.

Os Impérios Russo e Otomano disputaram durante séculos o controle sobre a área que vai dos Bálcãs ao mar Negro, e vestígios daquela rivalidade sangrenta reaparecem com frequência. Um deles se reflete na profunda preocupação suscitada na Turquia pela anexação da Criméia pela Rússia, disse Murat Yesiltas, diretor de estudos de segurança na Fundação de Pesquisas Políticas, Econômicas e Sociais, grande grupo de pesquisas de Ancara que tem laços estreitos com o governo.

Hoje a Turquia enfrenta um arco muito mais largo de territórios ocupados por forças russas do outro lado do mar Negro. Muitos na Turquia rejeitam o tratamento dado pela Rússia aos tártaros da Crimeia, que falam uma língua turcomana e se opõem à anexação pela Rússia. A maioria dos líderes tártaros da Crimeia foi forçada pela Rússia a partir para o exílio, e esta semana tártaros vêm impedindo equipes de operários de consertar as linhas cruciais de transmissão elétrica para a Crimeia, detonadas misteriosamente no fim de semana, o que gerou um blecaute quase total na península.

"A Turquia quer proteger a integridade territorial da Ucrânia", disse Yesiltas. A Turquia já deu assistência econômica à Ucrânia, mas tem se mostrado relutante em confrontar Moscou mais publicamente porque a Rússia é um de seus maiores mercados de exportação, além de fornecer três quintos do gás natural consumido na Turquia.

Com o presidente russo, Vladimir Putin, dizendo com relação à derrubada do jato coisas como "jamais toleraremos crimes como este cometido hoje" e avisando sobre "consequências graves", a maior dúvida talvez seja o que virá a seguir.

Na quarta-feira a Rússia anunciou planos de enviar para sua base aérea perto de Latakia seu sistema mais moderno de defesa antiaérea, o míssil antiaéreo móvel S-400. Mas, enquanto a maioria dos especialistas -além do próprio Erdogan, em declarações dadas na quarta-feira– minimizam os receios de um confronto mais amplo, muitos temem que os maiores prejudicados pelo incidente da terça-feira sejam os turcomenos.

Embora os dois pilotos do jato tenham conseguido saltar do avião, a Rússia disse que um deles morreu –possivelmente abatido por disparos feitos desde a terra enquanto descia de paraquedas–, assim como um fuzileiro naval enviado em um helicóptero que foi derrubado por forças em terra enquanto tentava resgatar os pilotos. O Kremlin disse que o segundo piloto foi resgatado por forças especiais russas.

Vários especialistas avisaram que, como retaliação, Putin pode intensificar os ataques russos contra os turcomenos.

"Eles são o alvo real", falou Jeffrey. "Putin pode pulverizá-los."

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Com reportagem de Ceylan Yeginsu, em Istambul

Tradução de Clara Allain


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