Folha de S. Paulo


Taleban fez campanha calculada contra mulheres em Kunduz

A ocupação do Taleban em Kunduz pode ter sido temporária, mas o que o grupo fez com os direitos das mulheres afegãs pode se provar duradouro.

Em uma campanha metódica, o Taleban perseguiu implacavelmente mulheres com todo tipo de perfil público, saqueou uma escola secundária e destruiu os escritórios de muitas das organizações que protegiam e apoiavam mulheres em Kunduz.

Entre as que fugiram estão as mulheres que dirigiam um abrigo para vítimas de violência, que os comandantes talebans dizem ser "imorais".

Foram embora mulheres instruídas que trabalhavam para o governo ou organizações internacionais; algumas diretoras de escolas e mulheres ativistas pela paz e pela democracia. Partiram –a maioria à noite– a pé ou em táxis degradados, se escondendo sob burcas, lutando por suas vidas.

Reuters
Mulheres afegãs aguardam distribuição de comida pelo Exército em Kunduz, área retomada do Taleban
Mulheres afegãs aguardam distribuição de comida pelo Exército em Kunduz, área retomada do Taleban

"Não vou voltar. Nunca vou voltar", disse Hassina Sarwari, diretora do grupo Women for Afghan Women (Mulheres para Mulheres Afegãs, em tradução livre) na província de Kunduz, que administrava um abrigo para mulheres vítimas de abuso, um centro de orientação para a família e um centro para os filhos de mulheres presas em Kunduz.

Depois de ter completado a campanha de queimar e saquear as organizações de mulheres, o Taleban continuou os ataques verbalmente, por mensagem de texto e ligações telefônicas, ameaçando mulheres e seus familiares, deixando claro que as mulheres permaneceriam na sua mira.

A mensagem da milícia, baseada em entrevistas com meia dúzia de mulheres que receberam os avisos depois de fugir de Kunduz, era que elas escaparam daquela vez, mas que, da próxima, não teriam a mesma sorte.

"Antes de termos conseguido tomar o controle do abrigo, Hassina Sarwari, a chefe do abrigo com todas as vagabundas fugitivas e meninas imorais, já tinha saído da cidade de Kunduz", disse Abdul Wali Raghi, um comandante taleban da região.

"A própria Hassina Sarwari é uma vagabunda imoral e, se a tivéssemos capturado, seria enforcada praça central na cidade de Kunduz", acrescentou.

SAQUES E DESTRUIÇÃO

Se em suas declarações de publicidade nos últimos anos o Taleban soou mais moderado, o comportamento do movimento em Kunduz deixou poucas dúvidas de onde realmente está.

Nos primeiros três dias da ocupação do grupo, mulheres que dirigiam organizações destinadas a ajudar outras mulheres tiveram as casas e os escritórios saqueados, os computadores roubados, os móveis, as televisões e os equipamentos destruídos.

Em seguida, o Taleban deixou mensagens em seus telefones, ou com parentes ou vizinhos, dizendo: "Volte e você será morta."

Entre as organizações destruídas pelos talebans estavam três estações de rádio dirigidas por mulheres: uma foi queimada, as outras duas, saqueadas.

O mesmo aconteceu com a escola secundária para meninas Fatima Zahra e o Women's Empowerment Center (Centro de Empoderamento das Mulheres, em tradução livre), que realizava sessões de sensibilização social e política e ensinava mulheres a costurar.

O escritório e o centro infantil do grupo Women for Afghan Women foram saqueados, seus computadores e carros, roubados, e o abrigo da organização para mulheres vítimas de abuso foi completamente queimado; ele também parecia ter sido atacado com marretas, com as janelas quebradas e as paredes e estruturas de portas despedaçadas.

ACUSAÇÕES DE ESTUPRO

Algumas alegações contra o Taleban –de que eles estupravam mulheres no dormitório da universidade e na prisão feminina– ainda não foram provadas. A acusação de estupros no dormitório foi transmitida pela Tolo TV, e as de violações nas prisões, pela One TV. Mas a prova que sustenta as alegações ainda é modesta.

Comandantes e porta-vozes do Taleban negaram vigorosamente essa acusação e ameaçaram matar "qualquer equipe ou repórter" tanto da Tolo TV quanto da One TV, chamando-as de "mídia satânica" que repete "propaganda".

O Taleban afirmou que, como a invasão da cidade ocorreu durante o feriado anual Eid al-Adha, as mulheres nem mesmo estavam no dormitório, mas visitando suas famílias em casa. O presidente da Universidade de Kunduz, Abdul Qadoos Zarifi, disse o mesmo em uma entrevista na televisão.

O que aconteceu na prisão está menos claro. O comandante taleban Raghi negou veementemente as acusações de estupro. No entanto, há relatos entre alguns grupos de mulheres de que pelo menos uma foi violentada várias vezes. Muito desse caso permanece obscuro, incluindo quem poderiam ser os autores dos ataques.

Mesmo em meio à destruição mais ampla em Kunduz ao longo dos últimos dias, incluindo dezenas de vítimas e danos generalizados em edifícios, a ameaça contra as mulheres foi particularmente assustadora. Isso se deve, em parte, a quão raras e recentes são as melhorias para as mulheres afegãs em territórios além de Cabul, capital nacional.

Em Kunduz, conhecida por ter alguns dos casos mais terríveis envolvendo mulheres, incluindo pelo menos dois episódios de apedrejamento nos últimos cinco anos, estupro coletivo e estupros de crianças, levou anos para que as mulheres se sentissem seguras o suficiente para trabalhar.

Agora que se sentem no alvo e sob vigilância dos talebans, não é provável que elas voltem e, se o fizerem, é provável que escolham trabalhos em que sejam menos visíveis e menos facilmente rastreadas.

"Há danos psicológicos", disse Fiona Gall, diretora da Acbar, um grupo que representa organizações não governamentais no Afeganistão, referindo-se aos efeitos tanto nas organizações de mulheres quanto nos grupos humanitários menores que trabalham em Kunduz.

"Essas pessoas vão relutar muito mais em fazer qualquer coisa que se destaca", por medo de que suas famílias fiquem visadas, afirmou.

Najim Rahim - 29.set.2015/AFP
Soldados das forças afegãs enviados para retomar a cidade de Kunduz do Taleban, no final de setembro
Soldados das forças afegãs enviados para retomar a cidade de Kunduz do Taleban, no final de setembro

ÚNICA ENGENHEIRA

Fawzia Bostani, uma engenheira civil que trabalha para o Ministério das Obras Públicas em Kunduz, foi ameaçada durante anos pelo Taleban. Tinha certeza de que eles viriam procurá-la uma vez que entrassem na cidade.

Ela é a única engenheira civil mulher que trabalha em Kunduz, disse. E seus projetos –incluindo roteamento e restauração de estradas, além da participação em um esforço para saber a opinião das mulheres locais na construção– tornaram-na bem conhecida na área.

No dia seguinte à chegada do Taleban, ela vestiu uma burca e foi pelos becos até a casa de um vizinho –foi na hora certa.

"Naquela noite, o Taleban veio à minha casa e disse: 'Onde está aquela mulher que trabalha na construção civil?'", disse ela. "Meu irmão mais velho disse: 'Não há nenhuma mulher nesta casa que trabalha em qualquer organização fazendo isso.'"

Os membros do Taleban mostraram ao irmão uma fotografia da esquina de seu quarteirão, dizendo que tinham visto um carro buscá-la todas as manhãs.

Assim que os talebans saíram, o irmão ligou para ela e lhe disse para fugir. Embora estivesse escuro, ela caminhou até o limite da cidade e, em seguida, tomou um triciclo motorizado por mais de 100 km para a província vizinha de Baghlan.

Poucos dias depois, o Taleban voltou à sua casa em Kunduz e deixou uma mensagem com a cunhada: "Não queremos vê-la aqui novamente".

Bostani disse que não tem planos de voltar a Kunduz.

A chefe de gabinete do Ministério das Mulheres do governo afegão em Kunduz, Naheed Asifi, também fugiu e deixou claro que ela estava relutante em voltar.

"Se a sua vida estivesse em perigo e você soubesse que há uma ameaça significativa, você voltaria?", perguntou. "Tenho certeza de que não."

Perguntada se o governo será capaz de encontrar alguém para substitui-la em Kunduz, Asifi disse: "Acho que ninguém iria".

RETOMADA DE SERVIÇOS

Apesar da sensação de crise e deterioração, Manizha Naderi, diretora-executiva da Women for Afghan Women, disse que tinha certeza de que o grupo iria encontrar uma maneira de restabelecer os serviços para as mulheres vulneráveis em Kunduz, mas reconheceu que isso envolveria muito mais do que encontrar novos escritórios.

"Não vejo a maioria das pessoas que trabalhavam em Kunduz voltando, por isso vai ser um grande desafio encontrar uma equipe", disse.

Ela fez uma pausa e acrescentou:

"Mas as pessoas precisam de nós, por isso temos de chegar a um plano. Se pararmos de trabalhar, será uma grande vitória para o Taleban."

Tradução de MARIA PAULA AUTRAN


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