Folha de S. Paulo


análise

Violência sectária volta à agenda política turca

A Turquia, como o Brasil, viveu a década passada com autoconfiança. Cresceu 3,6% ao ano, diversificou parcerias comerciais, consolidou-se como destino turístico e investiu em política externa ativa, entre vários feitos.

Parecia estar cuidando dos problemas internos e externos, projetando-se como uma potência ascendente.

Ao que tudo indica, como o Brasil, o bom momento se foi e abundam dificuldades. Crescem a instabilidade política e a desaceleração econômica, e a crise síria cobra seu custo em refugiados, terrorismo e progressivo isolamento.

A chamada questão curda é, desde os primórdios da república estabelecida por Atatürk em 1923, tema sensível. De 1984 a 1999, o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) fez largo uso de táticas terroristas, e estima-se que 30 mil tenham morrido.

Seu líder, Abdullah Öcalan, está preso desde 1999, e a questão curda perdia seu ímpeto violento, com muitos curdos se tornando eleitores do AKP, partido do premiê Recep Tayyip Erdogan, e o PKK entrando em negociações de paz com o governo em 2013.

Depois das eleições parlamentares de junho deste ano, as negociações foram interrompidas. O PKK voltou às armas, e as forças de segurança retomaram os ataques.

Novamente, operações militares e mortos dos dois lados. Algo novo ocorreu, porém: militantes curdos e simpatizantes de suas causas foram as maiores vítimas em três grandes atentados, o mais recente e mais letal deles sábado (10), em Ancara.

DISPUTA DE FORÇAS

Até então, os atentados assumidos pelo grupo terrorista Al Qaeda e ocorridos em Istambul em 2003, tinham sido aqueles com o maior número de vítimas, 57 mortos.

Antes de Ancara, em 5 de junho deste ano, Diarbakir foi palco de um atentado em um comício do partido opositor HDP, com quatro mortes. Em 20 de julho, foi a vez de Suruç, no distrito de Suliurfa, onde 33 morreram.

Os responsáveis? Até agora não se apurou ao certo, mas seriam, supostamente, células ligadas à facção terrorista autodenominada Estado Islâmico.

Como os curdos têm se mostrado importante resistência ao EI seja em território sírio (com as milícias YPG e YPJ) ou iraquiano (peshmergas), a alegação faz sentido.

O premiê turco, Ahmet Davutoglu, listou ainda como possíveis responsáveis o PKK e duas organizações de esquerda. O jornal "Hürriyet" relata haver quem creia que militantes nacionalistas contrários à acomodação com os curdos possam ser culpados.

Os atentados de sábado ocorreram no local onde sobretudo ativistas do HDP se concentravam para uma manifestação pacífica justamente contra o conflito entre o governo e o PKK, organizada por sindicatos, associações profissionais e ONGs.

Justamente o HDP, que superou 10% dos votos e ganhou cadeiras no Parlamento em junho, dificultando o projeto presidencialista de Erdogan. O HDP que, segundo pesquisas, deve repetir o feito em 1º de novembro, quando a Turquia terá novas eleições parlamentares porque nas de junho não foi possível formar um governo.

Se naquela campanha o terrorismo era tema hipotético, agora é um grande drama. A violência sectária integra a agenda política. Sem trégua à vista, a Turquia caminha para um período obscuro.

MONIQUE SOCHCZEWSKI é professora da pós-graduação em ciências militares na Eceme, Rio; ARIEL LEVAGGI GONZALEZ é pesquisador da Universidade Koç, Istambul


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