Folha de S. Paulo


Cidade vizinha à Síria luta contra avanço do Estado Islâmico

Perto da fronteira entre a cidade síria de Kobani e a Turquia, um casal com filho pequeno pede à reportagem carona até Suruç, a 10 km dali. A família, que mora na única vila grudada à divisa, do lado turco, espera sob o sol na beira da estrada, num calor de 40 graus.

Mustafa Ahmad, 35, um homem robusto e desembaraçado, conta que trabalhava como marmorista no Curdistão do Iraque quando o Estado Islâmico começou a atacar Kobani. Voltou a sua cidade de origem para ficar com a mulher e o filho de dois anos. No ano passado, a família decidiu deixar Kobani. O tio de Ahmad, segundo conta, foi alvo de tiros de um membro da milícia e foi ferido na mão —ele também cruzou a fronteira e deixou sua cidade.

Juliana Gragnani/Folhapress
Faixa com foto de vítimas de ataque atribuído ao EI é exibida em centro cultural de Suruç
Faixa com foto de vítimas de ataque atribuído ao EI é exibida em centro cultural de Suruç

As colinas de Kobani, uma cidade de construções cinzas, já foram fincadas com bandeiras do Estado Islâmico. Mas, em janeiro deste ano, a cidade foi reconquistada por forças curdas, com a ajuda dos EUA. Em junho, novos ataques foram registrados no local.

Assim como 70% da cidade, a casa da família que pediu carona foi completamente destruída. Foi para lá que outro sírio, Abdullah Kurdi, voltou nesta sexta (4) para enterrar mulher e filhos. Eles morreram ao tentar cruzar o mar entre a Turquia e a Grécia. O caçula era Aylan, o menino cujo corpo sem vida deitado numa praia turística da Turquia assombrou o mundo.

No carro, Ahmad diz que a culpa pela destruição da cidade no norte da Síria é do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. "Ele deixou o Estado Islâmico atacar Kobani", afirma, defendendo as forças curdas —o YPG (Unidades de Proteção do Povo Curdo), na Síria, aliado dos EUA contra o Estado Islâmico, e o PKK, considerado terrorista por Ancara e pelo Ocidente. Em Suruç, onde a família desce do carro, os muros são repletos de pichações com "PKK".

Suruç —cuja população, assim como a de Kobani, é majoritariamente curda— abriga o maior campo de refugiados sírios na Turquia, com 35 mil pessoas. Dos 1,9 milhão de sírios no país, 260 mil moram nos 25 campos da Turquia. Muitos dos que estão fora dos campos vivem em condições de miséria —em Istambul, é comum ver sírios pedindo dinheiro nas ruas.

Foi só após um atentado em Suruç que a Turquia passou a atacar o Estado Islâmico. Em 20 de julho, um homem-bomba deixou mais de 30 mortos no centro cultural da cidade, onde cerca de 350 jovens estavam reunidos. Investigações atribuem a autoria do atentado a um estudante turco de 20 anos supostamente ligado ao EI.

Antes disso, a Turquia havia sido acusada pela comunidade internacional de omitir-se diante da ameaça do EI. "A percepção de que não estivemos ativos contra o Estado Islâmico não é verdadeira. Provavelmente foi nossa culpa. Não fomos capazes de apresentar nosso caso de maneira eficiente", diz o porta-voz do governo da Turquia, Cemalettin Hasimi. Ele cita operações facilitadas pela Turquia: no ano passado, o país autorizou que os peshmerga (Exército curdo) vindos do Iraque passassem pelo território turco para chegar em Kobani, onde lutariam contra o EI.

BRINQUEDOS

Hoje, uma faixa preta cobre a entrada do centro cultural em Suruç, ofuscando os tijolos azuis, amarelos, verdes e vermelhos que colorem seu muro. Por dentro, ainda há vidros quebrados e marcas de sangue no chão.

Os jovens de várias partes da Turquia reunidos no dia da bomba queriam cruzar a fronteira em direção a Kobani e lá plantar árvores e construir uma biblioteca e um parquinho para crianças.

Uma outra faixa pendurada no centro cultural mostra imagens dos rostos das vítimas, gente como Mert Cömert, 19, que saiu da região do Mar Negro para Suruç escondido dos pais, e Ferdane e Nartan Kiliç, mãe e filho da cidade de Bursa, noroeste da Turquia. O memorial se completa com brinquedos espalhados pela grama, objetos que seriam levados às crianças de Kobani.

Fuat Karatas, 49, dono de uma barbearia em frente ao centro cultural, fora observar a reunião dos jovens naquele dia. A bomba explodiu a dez metros de distância dele. "Quando vou dormir, as imagens dos corpos espalhados no chão voltam", diz ele, que saiu ileso.

A sobrevivente Serife Erbay, 29, diz que o grupo queria "mostrar ao mundo como é possível fazer uma revolução reerguendo uma cidade".

O presidente da associação de jovens socialistas curdos (SGDF) que organizava a travessia, Oguz Yuzgeç, 23, discursava num palco ao ar livre no momento da explosão. Recuperado após três semanas no hospital, ele afirma, de Istambul, que a campanha "visava chamar a atenção do Ocidente à necessidade de reconstruir regiões sírias destruídas pela guerra" e que o projeto será retomado quando os amigos feridos melhorarem.

Erkan Doganay, diretor do departamento de Desastres e Emergências do primeiro-ministro, que cuida dos refugiados na Turquia, diz que o país "fará seu melhor para ajudar na reconstrução" e que isso "acontecerá diante da normalização da situação na Síria". Para ele, as portas abertas para os 1,9 milhão de sírios é uma medida "emergencial". "Esperemos que eles voltem para lá quando tudo se normalizar na Síria", diz.

Doganay admite que os sírios em campos de refugiados dizem sentir-se em prisões.

Mizgin Dilbrin, 27, uma mulher síria de olhar austero, é voluntária num campo de refugiados municipal em Suruç. Ela também espera fazer a travessia para Kobani, onde não tem mais casa.

O campo que ajuda a manter —com barracas na terra, ventiladores improvisados, crianças correndo entre os abrigos— tem 500 sírios, muito menor que o do governo federal na cidade.

Mas nem todos que estão lá querem voltar para a Síria —muitos tentam chegar a cidades grandes da Turquia ou a países da Europa, numa jornada que às vezes termina como a do menino Aylan.


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