Folha de S. Paulo


Pedido de extradição de empresário complica relações entre EUA e China

A China está exigindo que o governo Obama extradite um empresário rico e bem conectado politicamente que fugiu para os Estados Unidos, de acordo com diversos funcionários do governo norte-americano que estão familiarizados com o assunto.

Caso ele solicite asilo político, pode se tornar um dos mais destrutivos desertores na história da República Popular da China.

O caso do empresário Ling Wancheng também fragilizou o relacionamento entre os dois países, que já estão em choque por numerosas questões, logo antes da primeira visita de Estado do presidente Xi Jinping aos Estados Unidos, em setembro.

Entre os pontos de conflito estão extensas operações de pirataria de dados chinesas contra o governo dos Estados Unidos e as agressivas reivindicações territoriais chinesas.

Ling é o irmão mais novo de Ling Jihua, que por anos deteve um posto equivalente ao de chefe do gabinete civil da Casa Branca, comandando o aparelho diretivo do Partido Comunista em sua função de diretor do Escritório Geral.

Ling Jihua é uma das vítimas mais conhecidas da campanha de combate à corrupção que o presidente Xi transformou em uma das peças centrais de seu governo.

Jason Lee/Reuters
Ling Jihua, ex-diretor do Escritório Geral do PC chinês e irmão de Ling Wancheng, em foto de 2013
Ling Jihua, ex-diretor do Escritório Geral do PC chinês e irmão de Ling Wancheng, em foto de 2013

O governo Obama até agora se recusou a atender às exigências de Pequim quanto a Ling Wancheng, e sua possível deserção pode ser um golpe de inteligência pesado contra a China, depois que surgiu a revelação, no mês passado, de que hackers haviam roubado os dados pessoais de milhões de funcionários e prestadores de serviços do governo federal dos Estados Unidos.

Autoridades norte-americanas disseram ter quase certeza de que o roubo de dados havia sido executado por ordem do governo chinês.

A riqueza de Ling e o status de sua família lhe permitiam livre movimento nos mais elevados círculos chineses, e pode ser que ele esteja em poder de informações embaraçosas sobre atuais e antigos funcionários leais a Xi.

Ling parece ter escapado das autoridades chinesas.

Ele está nos Estados Unidos, agora, de acordo com funcionários do governo norte-americano.

Em Loomis, no sopé da Sierra Nevada, registros imobiliários mostram que Ling é dono de uma casa de 700 metros quadrados, que ele comprou de um jogador de basquete profissional por US$ 2,5 milhões (R$ 8,63 milhões).

ARRANJO

Nos últimos meses, o governo chinês vem reforçando a pressão sobre a administração Obama pelo retorno de Ling, de acordo com funcionários norte-americanos. Os funcionários falaram sob a condição de que seus nomes não fossem mencionados, para que pudessem discutir uma questão diplomática delicada que já complicou um arranjo fechado em abril entre o Departamento de Segurança Interna (DSI) dos Estados Unidos e o Ministério de Segurança Pública da China.

Sob o arranjo, negociado durante uma visita de Jeh Johnson, o secretário da Segurança Interna dos Estados Unidos, a Pequim, os norte-americanos poderiam deportar muitas das dezenas de milhares de chineses que aguardam deportação, alguns em centros de detenção norte-americanos.

Em troca, os Estados Unidos ajudariam a China a rastrear fugitivos chineses ricos que vivem nos Estados Unidos, e que podem estar violando também as leis norte-americanas.

Diversos funcionários norte-americanos confirmaram que Ling está nos Estados Unidos, mas não informam publicamente se ele solicitou asilo nem fornecem informações sobre seu paradeiro.

O DSI, que cuida dos casos de asilo, não comenta sobre casos específicos em função das leis de proteção à privacidade.

O Ministério do Exterior chinês não comentou depois de receber um pedido de informações sobre o caso de Ling encaminhado via fax. Os assessores de imprensa da Casa Branca, do Departamento de Estado e do DSI se recusaram a comentar.

Três números de telefone que pessoas da Califórnia usaram para manter contato com Ling tinham códigos de área da cidade de Dallas. Ling, que ao que se sabe não fala bem inglês, não respondeu a mensagens de texto em chinês com solicitações de uma entrevista.

Dois dos três números em questão estão desativados, e no terceiro ninguém atendeu.

CORRUPÇÃO 'GENÉTICA'

Embora não esteja claro o quanto Ling Wancheng sabe, o Partido Comunista mesmo apontou para algumas pistas fascinantes sobre o comportamento do irmão dele, Ling Jihua, dando a entender que a corrupção era um traço de família.

No mês passado, o partido anunciou que Ling Jihua —homem leal a Hu Jintao, o antecessor de Xi Jinping— havia sido expulso da agremiação e seria julgado, declarando que ele havia "aceitado imensas propinas, pessoalmente e por intermédio de sua família".

Ling Jihua, 58, ascendeu por meio da Liga Jovem do Partido Comunista, comandada por Hu nos anos 80, e mais tarde serviu como diretor ou vice-diretor do Escritório Geral do Comitê Central, entre 1999 e 2012.

Ele era secretário pessoal de Hu e seu protegido mais próximo, e sua posição lhe conferia grandes poderes: o controle sobre os seguranças que protegem os principais líderes, influência significativa na seleção de pessoal para os mais altos postos, e um papel central na implementação das políticas do governo.

"É o centro nervoso de todo o sistema", disse Joseph Fewsmith, professor da Escola Pardee de Estudos Mundiais, da Universidade de Boston, e especialista em política chinesa, sobre o antigo posto de Ling Jihua. "É o ponto focal do poder político".

A expectativa era de que Ling Jihua fosse promovido à elite do partido, o Politburo, como aconteceu com todos os ocupantes anteriores de seu cargo desde 1942, o que inclui o primeiro-ministro Wen Jiabao.

Mas, em 18 de março de 2012, o filho de Ling morreu em um acidente com sua Ferrari preta em Pequim. Uma das duas mulheres que o acompanhavam no carro morreu alguns dias depois do acidente.

O acobertamento frustrado do acidente por Ling Jihua ajudou a causar sua queda política. Ele viu negada sua ascensão ao Politburo, foi demovido a uma posição menos importante e, em dezembro de 2014, foi colocado oficialmente sob investigação por suspeita de corrupção.

Mas o inquérito de corrupção sobre Ling Jihua vai bem além do acidente com a Ferrari, e seu irmão mais jovem, Ling Wancheng, pode ter desempenhado papel importante.

FORA DO RADAR

Como funcionário de primeiro escalão, Ling Jihua tinha seus movimentos monitorados.

Mas seu irmão, um cidadão comum, enfrentava muito menos restrições. Ele fez fortuna como presidente de uma companhia de investimento sediada em Pequim, que adquiriu participações acionárias oportunas em empresas que em seguida passariam por bem-sucedidas ofertas públicas de ações, o que resultou em lucro de US$ 225 milhões para sua companhia, de acordo com uma reportagem da Caixin, uma respeitada organização noticiosa chinesa.

Uma empresa que usa o mesmo endereço na Califórnia que Ling Wancheng usou para comprar sua mansão em Loomis também adquiriu duas pistas de golfe, uma perto de Loomis e outra em Carson City, Nevada, segundo os registros de imóveis.

Ray Matteson, vizinho de Ling em Loomis, e sua mulher logo se tornaram amigos do casal da casa ao lado, que se apresentou a eles como Jason e Jane Wang.

Os Matteson os convidaram para jantares ou bebidas pelo menos três vezes. Ling levou presentes, e certa vez lhes deu uma garrafa de bebida de Shanxi, a província natal de sua família, e em outra ocasião duas garrafas magnum de um vinho da Califórnia.

Os Matteson disseram que o vizinho jamais fez menção às disputas políticas de alto nível em que sua família está envolvida, à prisão de seus dois irmãos mais velhos ou à morte do sobrinho.

"Na minha opinião, ele sem dúvida era um cavalheiro", disse Matteson, que, como outra pessoa que o conheceu em Loomis, confirmou que Jason Wang era o homem que a mídia chinesa identifica como Ling.

Mas nenhum dos entrevistados conseguiu reconhecer a mulher apresentada como Jane Wang nas fotos da mulher de Ling, Li Ping, antiga apresentadora de TV na China.

A situação do visto de Ling não é clara.

Christopher Bentley, porta-voz dos serviços de cidadania e imigração, parte do DSI, disse que casos de asilo em geral demoram entre um a três anos para ser decididos. Durante o período, ele disse, o solicitante de asilo tem direito a permanecer legalmente no país.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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