Folha de S. Paulo


Lula e Chávez ficaram 7 meses sem se falar, revela telegrama

Um telegrama produzido pela Embaixada do Brasil na Venezuela revela que os então presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Hugo Chávez (1954-2013) ficaram sete meses sem conversar, logo após o venezuelano ter chamado o Congresso brasileiro de "papagaio" dos Estados Unidos.

Evaristo Sá - 26.mar.08/AFP
Lula e Hugo Chávez visitam a refinaria Abreu e Lima (PE) em 2008
Lula e Hugo Chávez visitam a refinaria Abreu e Lima (PE) em 2008

O congelamento das relações ocorreu em 2007, segundo telegrama do embaixador em Caracas Antônio José Ferreira Simões datado de março de 2009 –classificado na época como "reservado", o documento foi tornado público nesta terça-feira (19) pelo Ministério das Relações Exteriores, ao atender um pedido feito pela revista "Época" pela Lei de Acesso à Informação.

"No contexto das declarações do presidente Chávez sobre o Congresso Nacional brasileiro, os dois presidentes ficaram sem encontrar-se ou falar por telefone durante sete meses", escreveu o embaixador, que hoje ocupa no Itamaraty o cargo de subsecretário-geral da América do Sul, Central e do Caribe.

As relações entre Lula e Chávez foram retomadas por volta de setembro de 2007, quando começou uma série de cinco encontros realizados trimestralmente. Logo após a morte de Chávez, em 2013, o Instituto Lula divulgou um vídeo em que o petista fez diversos elogios ao venezuelano, com quem disse ter "boa afinidade ideológica" e uma relação que extrapolava a de dois presidentes, sendo "uma relação de dois companheiros". No vídeo, Lula não falou sobre o congelamento de comunicação por sete meses.

"Muita gente diz que o Chávez era uma pessoa polêmica. E era. E era bom que fosse assim. Porque o Chávez permitia que as reuniões da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) sempre fossem muito vivas, muito fortes", disse o ex-presidente.

De acordo com o telegrama enviado pelo embaixador Simões ao Itamaraty, apesar de alguns tropeços, a relação entre Brasil e Venezuela atingiu níveis sem precedentes durante as gestões de Lula e Chávez, o que tornou o Brasil um parceiro preferencial de negócios.

O comércio bilateral, segundo Simões, registrou um aumento médio próximo de 10% ao ano desde a posse de Lula, em 2003, passando de US$ 880 milhões para US$ 6 bilhões em 2009. A Venezuela passou "a representar uma plataforma central para o processo de internacionalização das empresas brasileiras", que "ganharam projeção nos setores de obras públicas, fornecimento de equipamentos industriais e agrícolas, petroquímica e bens de consumo (Odebrecht, Cotia Trading, Volvo do Brasil, Avibrás, Braskem, Brahma, Sadia, Natura, entre outras)".

Os investimentos brasileiros na Venezuela, conforme o embaixador, atingiram US$ 3 bilhões em 2007.

Segundo o embaixador, a Venezuela também se beneficiou várias vezes da parceria com o Brasil, como no episódio da greve dos petroleiros da Venezuela de 2002 em que Lula, como presidente eleito, acolheu uma sugestão do então embaixador brasileiro, Ruy Nogueira, e pediu ao presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) que enviasse à Venezuela "um navio petroleiro carregado de gasolina", o que permitiu ao governo Chávez enfrentar a crise de desabastecimento e "também representou uma vitória moral para o presidente venezuelano".

Foi o momento "mais frágil" dos primeiros dez anos de governo Chávez (1998-2008), o que deu "ao gesto brasileiro importância crucial para sua [de Chávez] permanência na Presidência".

Além disso, informou o embaixador, o Brasil teve "papel crucial, por meio do Grupo de Amigos de Venezuela, para canalizar por vias pacíficas tensões que voltaram a surgir no relacionamento entre o governo e oposição entre 2003 e 2004".

Por fim, o Brasil "tomou iniciativas que contribuíram para aproximar decisivamente" a Venezuela e os Estados Unidos.

TV DIGITAL

Em outro telegrama, de agosto de 2009, o embaixador relatou um encontro em Caracas entre Chávez, ele e o então ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Miguel Jorge.

Na conversa, Chávez confidenciou que uma conversa sua com o presidente Lula e uma consulta ao seu ministro da Ciência e Tecnologia o fizeram "voltar atrás" da assinatura de uma carta de intenção com o governo da China para adoção do sistema de TV digital desenvolvido por aquele país.

O Brasil e o Japão haviam apresentado um modelo de TV digital desenvolvido em conjunto e queriam que a Venezuela o adotasse. Chávez confirmou que "já decidiu adotar o sistema nipo-brasileiro", mas pediu "a compreensão brasileira" porque queria concluir o diálogo com a China antes de qualquer anúncio oficial para "não ferir suscetibilidades de Pequim".

A adoção do sistema nipo-brasileiro foi anunciada pela Venezuela em fevereiro de 2013.

Na mesma conversa com Miguel Jorge e o embaixador brasileiro, Chávez relatou as ambições da Venezuela a respeito do Brasil, destacando: "(i) o desejo de obter bens de capital e tecnologia para pequenas siderúrgicas; (ii) interesse em que a Venezuela seja sócia da siderúrgica que a Companhia Vale do Rio Doce planeja construir no Pará; (iii) disposição a iniciar, de imediato, estudos técnicos e projetos para a integração das cadeias produtivas entre a Venezuela e a Zona Franca de Manaus".


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