Folha de S. Paulo


Autor de foto histórica da guerra retrata Vietnã com smartphone

Nick Ut - 8.jun.1972/Associated Press
Foto tirada por Nick Ut em 8 de junho de 1972 mostra crianças fugindo de ataque com napalm no Vietnã
Foto tirada por Nick Ut em 8 de junho de 1972 mostra crianças fugindo de ataque com napalm no Vietnã

Ele está em pé na pista de direção norte da Rodovia 1 vietnamita, com tráfego intenso de cada lado e buzinas reverberando. Está apontando. Foi ali mesmo, ele diz – foi ali que aconteceu. Foi onde apareceram as crianças gritando. Foi ali que fiz a foto que o mundo não conseguiu esquecer.

Huynh Cong Ut, conhecido como Nick Ut, tinha 21 anos naquele dia, há mais de meia vida atrás, quando, ali nessa mesma estrada, ele apontou sua câmera para o nordeste e captou uma imagem que se tornaria uma das mais famosas da história : uma menina vietnamita nua fugindo aos gritos depois de aviões sul-vietnamitas à procura de insurgentes vietcongues terem atacado do ar com napalm.

Na segunda-feira (8), 43 anos mais tarde, Ut voltou ao mesmo lugar para documentar algumas de suas recordações da Guerra do Vietnã com uma ferramenta de uma era completamente diferente: um iPhone 5 de 114 gramas com a capacidade de transmitir fotos ao mundo no piscar de um olho digital.

"Fiquei ali, vendo as bombas cair", disse Ut, falando daqueles momentos de anos antes, logo antes de expor um rolo de filme preto e branco Kodak Tri-X que trazia a imagem da menina Kim Phuc, de 9 anos, com o corpo gravemente queimado.

"Eu era tão jovem!", disse o fotógrafo, que trabalha para a Associated Press.

A imagem que Ut fez em 8 de junho de 1972 de Kim Phuc, hoje conhecida como "a menina do napalm", ajudou a cristalizar a discussão travada havia meia década nos Estados Unidos sobre uma guerra distante que foi letal para tantas pessoas. Mas a imagem iniciou seu trabalho de persuasão em páginas de jornais muitas horas mais tarde, não da maneira instantânea de hoje.

Assim, quando Ut voltou ao povoado de Trang Bang, na segunda-feira, ele chegou equipado com algo mais apropriado para os tempos atuais: levou seu iPhone e ganhou a guarda da conta de Instagram da AP Images naquele dia.

Isso lhe garantiu o poder de carregar instantaneamente imagens que, durante a guerra do Vietnã, teriam levado horas para cobrir os 40 quilômetros entre Trang Bang e o escritório da AP em Saigon. Em seguida, teriam que passar pelo processo de revelação das fotos, antes de uma cópia poder ser impressa e então ser transmitida para o mundo.

Sentado numa van a caminho de Trang Bang, Ut, com uma Leica digital pendurada do pescoço, fez algumas fotos de prova com o iPhone. Saindo de Ho Chi Minh City (a antiga Saigon) em direção norte, a paisagem revelava como a Rodovia 1 mudou desde a guerra. Hoje as atrações à beira da rodovia incluem o restaurante Sushi World e um camelô oferecendo uma miniatura da Estátua da Liberdade.

Então, quando a van atravessou uma ponte, Ut, anunciou a chegada ao ponto onde foi feita a imagem famosa: "Aqui! Aqui!"

Ele pressionou o telefone contra o para-brisa para fotografar a estrada e depois fez uma imagem do templo onde Kim Phuc e sua família foram se refugiar antes do bombardeio.

Ut já fez essa viagem muitas vezes –pelo menos uma vez por ano nos últimos anos, ele conta. Ela ainda é significativa para ele. Ut e a foto –e, por extensão, a vila de Trang Bang– estão ligados para sempre.

Em Trang Bang, Ut passou por uma barraca na qual trabalham dois primos de Kim Phuc e depois andou por um quilômetro pela rua, até chegar ao lugar onde fez a imagem que ficou famosa. Um grupo de fotógrafos o aguardava ali, e os carros trocaram de pista para dar espaço a eles.

A cena que se viu a seguir foi curiosa: Ut fazendo fotos, Ut fazendo fotos de suas próprias fotos, pessoas fazendo fotos de Ut fazendo fotos. Quando tudo terminou, não estava claro se mais imagens foram feitas por Nick Ut ou feitas dele.

Ut acabou postando no Instagram seis imagens de Trang Bang, incluindo uma de Ho Van Bon, 54 anos, primo de Kim Phuc. Ho é o menino que estava à esquerda de Kim Phuc na foto de 1972. Hoje, sentado em sua barraca na beira da estrada, ele comenta que a partilha instantânea de fotos pode ser uma força poderosa quando coisas ruins acontecem.

"Se aquilo que aconteceu então acontecesse hoje, o mundo de hoje é um lugar muito melhor, com as redes sociais chamando a atenção para coisas instantaneamente", disse Ho, falando com a ajuda de um tradutor.

Mas, se fosse hoje, não seria apenas Nick Ut que estaria carregando fotos. Sua foto, por poderosa seja, teria tido que competir pela atenção do mundo.

"Imagine como teria sido em 1972 se tivéssemos tido toda a tecnologia e os sistemas de 2015", diz David Campbell, professor de Newcastle, Inglaterra, e especialista em narração de histórias com meios visuais.

"Algumas daquelas pessoas que fugiam do ataque com napalm teriam seus próprios smartphones. Alguns dos soldados teriam smartphones. Em 1972, as pessoas viam uma seleção muito editada de imagens que representavam momentos muito mais isolados no tempo. Hoje veríamos uma gama muito maior de imagens, cobrindo um tempo muito mais longo e apresentando uma visão muito mais ampla."

Nick Ut, cujo irmão Huynh Thanh My, também fotógrafo da AP, foi morto na Guerra do Vietnã em 1965, desconfia que o conflito teria sido visto sob ótica muito diferente pela população e os políticos dos Estados Unidos se a partilha instantânea de fotos existisse na época. Ele diz que, antes mesmo de seu filme ter chegado a Saigon, "teria chegado ao Facebook".

"Meu Deus. Hoje todo o mundo no Vietnã tem telefone", diz o fotógrafo. "Duas horas seria tempo demais para esperar. Hoje bastam dois minutos para você mandar alguma coisa para o mundo. Eu não teria podido imaginar isso."

Tradução de CLARA ALLAIN


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