Folha de S. Paulo


Volta ao Vietnã 'doeu mais que a primeira viagem', diz repórter

Fiz duas viagens ao Vietnã, a primeira em 1968, e a imagem que ficou foi da embaixada americana assaltada, portões caídos, estilhaços do vidro das janelas.

Combatentes vietcongues tomaram a embaixada em Saigon por apenas algumas horas, tempo suficiente para esse recado: existe possibilidade de os Estados Unidos sofrerem ali uma derrota militar, a primeira da história.

Sete anos depois, a guerra terminava, com os americanos humilhados enquanto tentavam fugir, nos helicópteros, em direção a um porta-aviões.

Kei Shimamoto - 1968/Reprodução
O repórter José Hamilton Ribeiro ferido por mina no Vietnã em 1968, em foto da revista 'Realidade'
O repórter José Hamilton Ribeiro ferido por mina no Vietnã em 1968, em foto da revista 'Realidade'

Um balanço do conflito permite diversas visões:

1. "Tempo quente" na Guerra Fria remete até ao início do desmoronamento da União Soviética, então a segunda maior potência mundial: tanto ela investiu, com armas e dinheiro, no Vietnã que suas contas nunca mais fecharam.

2. Circunstâncias especiais fizeram com que o conflito tivesse uma cobertura pela imprensa como jamais se vira antes –e muito menos se verá depois. Dois mil correspondentes passaram pelo Vietnã, 700 deles credenciados só em Saigon. A mansidão da censura favoreceu jornalistas independentes que se arriscavam sem credenciamento, desprovidos do mínimo de segurança que um cadastramento regular pode garantir.

Contando com equipamentos de maior mobilidade, a televisão levou a guerra para a casa das pessoas, que a seguiam dia a dia, como capítulos de novela.

3. A quantidade e a qualidade da cobertura da imprensa tiveram seu preço: 48 jornalistas mortos, 18 desaparecidos, 66 baixas, sem contar feridos.

(Eu próprio tive perdas, primeiro uma parte da perna esquerda após um episódio com mina, depois com a morte de meu parceiro, o fotógrafo Kei Shimamoto. Ele estava num helicóptero que explodiu no ar; só dois anos atrás foram achados objetos pessoais dele para que a família tivesse algo para enterrar.)

4. Pesquisadores indicam que os EUA começaram a perder a guerra em casa, com a repulsa dos jovens e manifestações de rua, que foram minando o moral do governo e que, também pela primeira vez, colocavam o povo americano contra seus dirigentes.

A perda de 58 mil jovens fardados foi a cicatriz jamais fechada dessa tragédia americana. E nunca mais, depois do Vietnã, o Exército americano foi o mesmo. Até então, ele trabalhava com recrutados ("amadores"); a partir de então, só opera com voluntários ("profissionais").

5. Fez-se também um fenômeno cultural. Livros, artigos, teses acadêmicas e filmes, alguns –como "Platoon", "Apocalypse Now", "Corações e Mentes"– sendo peças de cinema de primeira linha, seja entre filmes de guerra ou não.

Minha segunda viagem ao Vietnã foi 20 anos depois do fim da guerra. Doeu mais que a primeira. Encontrei o povo heroico que derrotara tão formidável inimigo transformado em peças de uma ditadura medíocre, um Estado policial.

Mas vi também notícia boa, como a de que o país –após fazer uma abertura econômica que trouxe investimento de grandes multinacionais– começou a ter números expressivos de crescimento anual, transformando o Vietnã num candidato a novo "tigre asiático".

Dessa segunda viagem, a imagem que ficou, já a caminho do aeroporto, foi a de um anúncio da Pepsi "brigando" com um da Coca. (Será que a abertura econômica abrirá caminho para outras?)

JOSÉ HAMILTON RIBEIRO é autor, entre outros, do livro "O Gosto da Guerra", sobre sua participação na Guerra do Vietnã.


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