Folha de S. Paulo


'Hoje não tenho provas, mas tampouco tenho dúvidas', diz carta de Cristina

Os espiões que não eram espiões. As perguntas que se convertem em certeza. O suicídio (que estou convencida) de que não foi suicídio.

Ontem [quarta-feira, 21] os argentinos tomamos conhecimento da denúncia completa do promotor Nisman. Sempre se disse que o idioma inglês, diferentemente do espanhol, não tem tanta diversidade de palavras para definir objetos, situações, adjetivos etc. E é verdade.

Mas tenho de reconhecer que nessa oportunidade, ao ver e ler a primeira página do jornal portenho "Buenos Aires Herald", a economia de vocabulário também tem suas vantagens.

Marcos Brindicci - 20.ago.2014/Reuters
Cristina Kirchner conversa com ministro da Economia, Axel Kicillof, em evento em agosto
Cristina Kirchner conversa com ministro da Economia, Axel Kicillof, em evento em agosto

De fato, esse jornal matutino expressa sua opinião sobre a denúncia do promotor Nisman e o faz com precisão cirúrgica, ou talvez linguística. Sobre um fac-símile do relatório, duas palavras inapeláveis: "Nothing new". Ou seja: "Nada de novo".

Como se não bastasse, o subtítulo acrescenta: "O informe de Nisman fracassa em avivar as chamas conspiratórias". Fracasso e conspiração, duas palavras que, se tivessem sido empregadas por esta presidente, a levariam a ser alvo das piores críticas. Creio que ninguém poderá acusar o periódico de língua inglesa de ser um veículo de mídia ligado ao governo ou cooptado por ele.

Eu poderia também mencionar a análise "Alerta vermelho", de Horacio Verbitsky, publicada no "Página 12" também hoje (quinta, 22), ou a de Raúl Kollmann, no mesmo jornal, nas páginas dois e três... mas já se sabe, não faltará quem as impugnem, apesar de Verbitsky e Kollmann serem jornalistas que analisaram e acompanharam o caso Amia desde sua origem.

E Horacio Verbitsky preside o CELS, que representa familiares de vítimas do atentado, que integram o coletivo Memoria Activa.

O "Buenos Aires Herald", o "Página 12" e outros veículos (não quero ser injusta com ninguém) derrubaram como um castelo de cartas aquilo que foi apresentado como "a denúncia do século" -que demonstraria nada mais, nada menos que a cumplicidade da presidente da República, de seu chanceler e do secretário-geral do La Cámpora no acobertamento dos iranianos acusados de terem participado do atentado contra a Amia, 21 anos atrás.

Por minha parte, devo confessar que uma leitura rápida da denúncia publicada no CIJ, o site na internet da Suprema Corte de Justiça da nação, não fez mais que confirmar minhas piores suspeitas e me dar resposta a muitas das perguntas que formulei no dia 19 deste mês na ÚNICA carta que escrevi e compartilhei com o povo argentino: "Amia. Outra vez: tragédia, confusão, mentira e pontos de interrogação".

O "única" em letra maiúscula se deve ao fato de, nesse dia, ter-se publicado e falado sobre "uma nova carta de Cristina" (sic). NÃO. A carta foi apenas uma, difundida por diferentes sistemas da rede. Basta ler o texto. Mas na Argentina, como sempre digo, todos os dias é preciso voltar a explicar o que é óbvio e simples.

Esta é a segunda, que escrevo precisamente por ter finalmente tomado conhecimento do teor da denúncia, tal como o resto dos argentinos. Saudável sinal democrático. A presidente denunciada se inteira ao mesmo tempo que os outros 40 milhões que ela tem a responsabilidade de representar.

Eu dizia que a leitura da denúncia não fez mais que confirmar minhas piores suspeitas. Tinha razão o "Buenos Aires Herald": "Nada de novo". Mas tinha razão também por outros motivos: informações falsas foram "plantadas" no informe de Nisman.

Quase uma réplica do que vi na comissão que acompanhava a investigação da causa principal. Os supostos agentes de inteligência que Nisman identificava como membros de uma "secretaria de inteligência paralela" em conexão "direta" com a presidente, Ramón Allan Héctor Bogado e Héctor Yrimia, NUNCA pertenceram à Secretaria de Inteligência, em caráter algum.

E mais, na data de 12 de novembro de 2014, a Secretaria de Inteligência denunciou criminalmente o sr. Bogado por possível delito de "tráfico de influência", já que ele se apresentava diante de funcionários da Alfândega como funcionário de Inteligência. A causa tramita no Tribunal Nacional Criminal e Correcional Federal N° 9.

Como se não bastasse, no dia 7 de agosto de 2013 a Secretaria de Inteligência recebeu um ofício emitido pelo Tribunal Oral Criminal N° 1 em uma causa envolvendo delito de "extorsão", em que se indagava se Ramón Allan Bogado prestava serviços na dita dependência e, se sim, se pedia que comparecesse ao tribunal para declarar.

Tudo o que foi detalhado aqui foi informado ao juiz Lijo a pedido dele, porque a denúncia de Nisman foi registrada no tribunal que ele presidia.

Essas atuações tiveram lugar antes de as autoridades atuais da Secretaria chegarem a seus cargos, e quem pôs seus superiores a par das mesmas foi precisamente o então diretor geral de Operações, engenheiro Antonio Horacio Stiusso, em 10 de novembro de 2014. A denúncia foi apresentada no dia seguinte.

Editoria de Arte/Folhapress
O local do crime - Nisman - Kirchner

Vale recordar aqui declarações feitas pelo promotor Nisman em 14 de janeiro de 2014 no programa "A dos voces", da emissora a cabo TN (vocês já sabem de quem se trata).

Ali, diante de uma pergunta sobre o engenheiro Stiusso, Alfano: "E o que Stiusso fez?", Nisman responde: "Absolutamente tudo o que eu lhe pedia. Com quem coincidia muitas vezes e tinha muitíssimas discrepâncias. Stiusso é um excelente profissional. Não tenho dúvidas, mas às vezes, como todo homem de inteligência, Stiusso vinha e me dizia 'tenho tal prova, fulano de tal participou de tal e tal fato', e a explicação que me dava quando falava comigo era coerente, a prova era dada por um informante da Tríplice Fronteira, 'mas escute aqui, para a Inteligência essa prova é ótima, tenho de ir diante de um tribunal, me expulsam no ato, o que eu falo? Foi o senhor Stiusso quem disse', e se geravam discussões. Eu apenas validava juridicamente aquilo ao qual podia dar validade judicial." Textual.

Se era Stiusso quem dava todas as informações que Nisman pedia e tinha, é mais que evidente que foi o próprio Stiusso quem lhe disse (ou escreveu?) que Bogado e Yrimia eram agentes da Inteligência.

É possível que ele tenha esquecido que ele próprio o tinha denunciado em novembro do ano passado e que a causa judicial tinha começado? E se um homem de memória tão boa tinha esquecido, por que não consultou o setor de Recursos Humanos?

Aqui ganham importância especial as declarações do juiz da causa, o Dr. Canicoba Corral, que se referiu em tom crítico à participação do engenheiro Stiusso, manifestando que, em lugar de colaborar, ele teria terminado por dirigir a investigação. Pessoalmente, creio que ele fazia algo mais que dirigi-la. Os fatos falam por si sós.

Se então tudo é falso. Se os agentes não são agentes. Se a Interpol, na pessoa de seu ex-chefe Ronald Noble, demoliu a acusação sobre os alertas vermelhos, afirmando que o que Nisman dizia era falso.

Se o comércio com o Irã diminui, em vez de aumentar, depois do Memorando. Se os que vendem grãos não são nem a presidente, nem o chanceler, nem o secretário-geral de La Cámpora, mas sim, de forma privada e sem intervenção do Estado, entre outras, as empresas Bunge, Cargill, Nidera, Oleaginosa Moreno da firma suíça Glencore, Aceitera General Deheza, Molinos Rio de La Plata, Vicentin, inclusive o senhor Jorge Aranda, diretor do "Clarín", que triangula operações de venda de arroz ao Irã através da empresa Molinos Libres SA.

Como se verá, empresas e empresários que não são exatamente "amigos" do governo, como o "Clarín" gosta de descrever alguns que não obedecem às suas diretrizes ou respondem a seus convites.

Se, além disso, o governo nunca comprou petróleo do Irã. Se, ademais, o suposto agente iraniano Jorge Alejandro Khalil aparece comercialmente associado a seu irmão Alberto Amado Edgardo Khalil, que foi diretor geral de Assuntos Jurídicos do Legislativo portenho, nomeado pelo então vice-presidente do Legislativo, Santiago de Estrada, e o então secretário administrativo Oscar Moscariello (hoje vice-presidente do Boca Jr. e dirigente do PRO).

Depois disso lhe foi outorgado por decreto o poder geral judicial para representar o governo da cidade, e ele renunciou à Direção Geral de Assuntos Jurídicos oito dias depois do processo e da ordem de prisão emitida contra o ex-chefe da Polícia Metropolitana Jorge "o hábil" Palacios por espionagem telefônica contra, entre outras pessoas, familiares de vítimas do caso Amia.

É estranho que quem professa com tanto fervor a fé islâmica, que merece meu maior respeito, e é defensor incondicional da República Islâmica do Irã, algo completamente legal na Argentina, se associe a dirigentes de um partido manifestamente anti-iraniano. Porque, se bem que não escolhemos nossos parentes, escolhemos nossos sócios comerciais, sim.

Também chama a atenção que o promotor Nisman, ou quem o assessorava na investigação, tenha se interessado em escutar as conversas telefônicas de Khalil apenas quando ele falava com determinadas pessoas. Em qualquer lugar do mundo, em uma investigação antiterrorista séria, a primeira coisa que se faz é determinar vínculos comerciais, de financiamento etc.

E mais, se algum juiz ou juíza aprofundar a investigação sobre esse cidadão, além de grampear seu telefone, talvez se depare com informações que nada tenham a ver com a religião, com o Irã ou com todas as coisas que parecem ser. Porque na Argentina, como em todo lugar, nem tudo o que parece ser é, e vice-versa.

Resumindo, a acusação de Nisman não apenas cai por terra, como constitui um verdadeiro escândalo político e jurídico. E aí está uma das chaves. O promotor Nisman não sabia que os agentes de inteligência que ele denunciava como tais não o eram. Muito menos que um deles tinha sido denunciado pelo próprio Stiusso.

Tampouco investigou, além das escutas que Stiusso lhe repassava, o cidadão Jorge Alejandro Khalil.

Editoria de Arte/Folhapress
As acusações de Nisman à gestão Kirchner

A esta altura, as perguntas que eu me fazia no dia 19 vão se convertendo em certezas, como quando se avançava na investigação do caso da Amia.

A denúncia do promotor Nisman nunca foi, ela própria, a verdadeira operação contra o governo. Ela caía por terra em pouco tempo. Nisman não sabia disso e provavelmente nunca soube. A verdadeira operação contra o governo era a morte do promotor depois de acusar a presidente, seu chanceler e o secretário-geral de La Cámpora de acobertarem os iranianos acusados pelo atentado terrorista contra a Amia.

O barulho da denúncia, mesmo que sem provas ou fundamento e cheia de informações "plantadas", somado à comoção internacional diante do que aconteceu na França, foi sepultado pela morte do promotor.

Evidentemente, sob a forma de aparente suicídio. Recurso esse que já tinha sido usado em muitos casos tristemente célebres. Quero lembrar um, em especial, para retomá-lo mais adiante: o de Lourdes Di Natale, que se "suicidou" jogando-se de uma sacada.

Não fazem o promotor Nisman voltar apenas para denunciar algo que sabiam que não tinha fundamento e que não poderia ir adiante. Quando a jornalista Sandra Russo analisa o caso no "Página 12" sob o título "O truque da confusão" e afirma "quiseram usar Nisman vivo e agora o usarão morto", ela se engana. O usaram vivo e depois precisaram dele morto. É tão triste e terrível assim.

Porque novas perguntas surgem à medida que muitas coisas vêm a público. Por que razão se suicidaria alguém que escreve uma mensagem em seu chat como a que escreve o promotor Nisman quando explica a um grupo fechado de amigos seu retorno intempestivo ao país?

Em um tom quase épico, refletindo que vinha cumprir uma tarefa "para a qual se preparou, mas que não imaginava que chegaria em tão pouco tempo".

Por que se suicidaria alguém que em seu chat explica que tinha pensado havia muito tempo em cumprir essa tarefa, mas que teve de adiantá-la? Talvez o fizeram vir devido ao que ocorreu na França? Ou talvez a tarefa tivesse sido pensada para a campanha presidencial? Ou talvez ele a tenha adiantado devido às mudanças efetuadas na Secretaria de Inteligência?

Por que se suicidaria alguém que no sábado às 18h27 enviou uma foto a um certo Wolff, membro da Daia, de uma imagem de seu escritório onde se veem papéis e marcadores de texto, e assegurava que estava se preparando para a reunião da segunda-feira na Câmara dos Deputados?

O próprio Wolff diz textualmente: "Escrevi a ele para consultá-lo sobre quem deveria levantar o segredo do sumário sobre os membros dos serviços de inteligência. Ele me respondeu que quem tinha de fazê-lo era o secretário de Inteligência, Oscar Parrilli, e me mandou uma foto da sala onde estava trabalhando".

Por que ele se suicidaria se não sabia que as informações do relatório eram falsas? Essas respostas com certeza poderão ser dadas por aqueles que o convenceram de que ele tinha em mãos "a denúncia do século", passando dados falsos a ele.

Mas, além disso, se ele tivesse suspeitado de falsidade de informação ou de falta de fundamento no argumento que "outros" haviam escrito, por que se suicidaria alguém que já tinha sido acusado ou desqualificado diretamente por muitos familiares das vítimas do atentado na Amia?

Em que teria mudado sua vida se o relatório não tivesse fundamento e se o juiz a cargo do caso, como é comum, corriqueiro e acontece todos os dias, lhe ordenasse "fique à disposição e reserve seus argumentos até que sejam reunidas mais provas"?

Por que se suicidaria alguém que, sendo promotor, gozava de qualidade de vida excelente, ele próprio e sua família?

E mais, por que pediria emprestada uma arma para se suicidar quando possuía duas armas registradas em seu nome no Renar (Registro Nacional de Armas da República Argentina)? Uma pistola semiautomática marca Bersa calibre 22 (semelhante à que foi encontrada ao lado de seu corpo) e um revólver de ação dupla, marca Rossi, calibre 38.

É impossível não observar que em qualquer lugar do mundo, se alguém aparece morto por uma arma que está registrada no nome de outra pessoa, e descobre-se que essa outra pessoa é a última que esteve com ela em vida, que lhe entregou a arma no mesmo lugar do fato, sua casa, e é colaboradora íntima sua, especialista em informática que também trabalha na causa da Amia desde 2007, o mínimo que se pode dizer é que é estranho. Muito estranho. Por isso é mais que recomendável garantir muita proteção ao senhor Daniel Ángel Lagomarsino.

Como também é muito recomendável encomendar sumários e investigações o mais prontamente possível sobre a própria custódia do promotor Nisman. Ou seja: os dez policiais federais. Eles informaram imediatamente a descoberta do fato ao 911 ou a seus superiores?

Como se permitiu a entrada no lugar onde estava o corpo do promotor Nisman de um médico particular de uma obra social, antes de transmitir informações ao juiz, a seus superiores, aos médicos forenses?

Estas e outras perguntas deveriam ser investigadas pela juíza e a promotora da causa. Sim, já sei. Tomei conhecimento de comentários publicados no Twitter e Facebook da juíza em questão.

Manifestações não apenas de nítido teor de oposição ao governo nacional, como também, eu diria, até ofensivas em relação à figura presidencial, manifestações essas que se revestem de gravidade maior por virem de uma funcionária pública de outro poder.

Vale mencionar de passagem que ela também fez observações no mínimo infelizes sobre sua própria instituição.

Mas o que mais me inquieta é que ela é a mesma juíza que presidiu a causa do suposto suicídio de Lourdes Di Natale, ex-secretária de Emir Yoma, que o denunciou por pagamento de propinas e foi uma figura chave na venda ilegal de armas. O caso foi arquivado, e Lourdes continua "suicidada".

Não foi por acaso que, em uma única nota que publiquei no dia 19 de janeiro, antes de tomar conhecimento da denúncia de Nisman, no segundo parágrafo, e referindo-me concretamente à morte do promotor Nisman, escrevi "suicídio?" com ponto de interrogação.

Hoje não tenho provas, mas tampouco tenho dúvidas. Era preciso trazê-lo ao país com urgência para aproveitar o clamor internacional provocado pelos atos terroristas ocorridos na França. O próprio Nisman diz isso em seu chat, quando fala que não imaginava que o faria tão logo, aludindo a algo que viria fazer em seu retorno imprevisto.

O que ele não poderia imaginar é que estava chegando ao fim o prazo não apenas para fazer a "denúncia do século", mas o de sua própria vida.

Vários meios de comunicação recordaram nos últimos dias casos de "suicídios" que nunca foram esclarecidos: o brigadeiro Etchegoyen, que investigava um caso de narcotráfico na Alfândega, enquanto a Aeronáutica era comandada por seu camarada José Antonió Juliá (pai dos dois condenados por narcotráfico na Espanha), o capitão de navio Horacio Pedro Estrada, imputado no caso da venda ilegal de armas, Marcelo Cataneo, acusado de pagar propinas no caso do Banco Nación-IBM, o caso da própria Lourdes Di Natale, que mencionei em parágrafos anteriores.

Mas o caso do promotor Nisman é diferente. Todos os casos acima citados envolvem questões de corrupção e dinheiro. O caso da Amia é outra coisa. É o maior atentado terrorista que nosso país sofreu, e custou a vida de 85 argentinos.

As vítimas e suas famílias esperam por justiça há 21 anos, e é precisamente a partir dali, do Poder Judicial, o único encarregado de investigar, acusar, julgar e condenar os responsáveis por tanta tragédia, que se pode cumprir essa demanda permanente por verdade e justiça.


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