Folha de S. Paulo


'Não há liberdade na França', diz humorista

Na noite de quinta-feira (15), após dar autógrafos em um pequeno bar-teatro que dirige em Paris, o polêmico comediante francês Dieudonné M'Bala M'Bala, 48, disse à Folha: "Não há liberdade de expressão na França".

Cercado por seguranças e assessores e irritado com a presença da reportagem, foi lacônico com o pedido de entrevista: "Não posso, converse ali com meu advogado".

A tensão não era à toa. No dia anterior, Dieudonné fora detido pelas autoridades francesas para depor sobre a frase que publicou no Facebook: "Eu me sinto Charlie Coulibaly".

Patrick Kovarik - 15.jan.2012/AFP
Em apresentação em 2012, Dieudonné faz gesto visto por críticos como alusão ao nazismo
Em apresentação em 2012, Dieudonné faz gesto visto por críticos como alusão ao nazismo

O comentário pegou carona na frase "Eu sou Charlie", que virou símbolo do ataque terrorista que deixou 12 mortos na sede do semanário "Charlie Hebdo" no dia 7.

O comediante a vinculou ao atirador Amedy Coulibaly, responsável pela morte de outras quatro pessoas em um mercado judaico no dia 9.

Por causa da frase, Dieudonné vai responder na Justiça por apologia ao terrorismo, em mais uma das ações (oito delas com condenações) que tem sofrido nos últimos anos por causa de acusações de antissemitismo e incitação ao ódio, entre outras.

"As pessoas que falam isso nunca viram um show dele", disse à reportagem seu advogado, Sanjay Mirabeau.

A frase publicada na internet seria uma ironia ao discurso de defesa de liberdade de expressão propalado pelo governo francês, com quem o comediante trava uma disputa pública –o primeiro-ministro, Manuel Valls, quer banir suas apresentações.

Segundo o advogado, Dieudonné falou, em depoimento na quarta (14): "Estou aqui para explicar duas palavras [Charlie Coulibaly]. O governo me trata como terrorista, mas meu trabalho é como o do 'Charlie'".

Dieudonné foi informado por casas de espetáculo que suas apresentações marcadas para sexta (16) e sábado (17) haviam sido canceladas –uma rotina em sua carreira.

Nas fotos tiradas com ele na quinta, os fãs repetiam um gesto polêmico popularizado pelo comediante: o "quenelle", que é esticar o braço no ombro oposto e com a mão aberta –para críticos, é uma alusão a saudações nazistas.

A mídia e as autoridades francesas têm frisado a diferença legal –e de liberdade de expressão– entre a atitude do comediante e a atuação do "Charlie Hebdo", com suas charges do profeta do islamismo, Maomé.

A legislação francesa não considera crime a blasfêmia, a sátira de religião, uma das características do "Charlie" –mas quem se sente ofendido tem o direito de processá-lo e buscar reparação judicial. Entre 1992 e 2014, foram cerca de 50 processos, segundo o "Le Monde" –em 19% deles, o jornal foi derrotado.

Leandro Colon/Folhapress
Leandro Colon/Folhapress Legenda: O humorista Dieudonné (centro) conversa com assessores no pequeno bar-teatro que dirige, em Paris, na quinta-feira (15)
Leandro Colon/Folhapress Legenda: O humorista Dieudonné (centro) conversa com assessores no pequeno bar-teatro que dirige, em Paris, na quinta-feira (15)

Por outro lado, argumentam as autoridades, a lei francesa tipifica como crime a negação de crimes contra a humanidade, entre eles o Holocausto, a apologia ao terrorismo, a difamação e o incitamento ao ódio racial.

Seria justamente o que Dieudonné estaria fazendo e o motivo pelo qual tem sido condenado em ações na Justiça local, alegam.

Em sua carreira, o comediante disse que o Holocausto é uma "memória pornográfica", declarou-se antissionista e satirizou judeus e israelenses em suas peças –já ironizou, inclusive, as câmaras de gás usadas para matá-los na Segunda Guerra Mundial.

Em 2008, causou polêmica ao levar a seu show o acadêmico Robert Faurisson, que nega o Holocausto. Na visita, o convidado foi recebido por um assistente de palco que usava roupa de prisioneiro de campo de concentração.

Filho de uma francesa com um imigrante camaronês, Dieudonné cresceu em família católica. Ironicamente, começou a carreira em parceria com o judeu Élie Sémoun, com quem rompeu depois.

Diante das acusações, o comediante francês nega preconceito contra judeus e acusa a comunidade judaica, junto com as autoridades e mídia da França, de persegui-lo. "Podemos rir de tudo, menos dos judeus", afirmou.

Além de ator e comediante, Dieudonné já tentou, sem sucesso, uma cadeira na Assembleia Nacional e no Parlamento Europeu. Apesar de atuar separado do partido de extrema direita Frente Nacional, é próximo do seu fundador, Jean-Marie Le Pen, padrinho de um dos seus filhos.


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