Folha de S. Paulo


Análise: Ataque ocorre em momento delicado

O bárbaro ataque ao "Charlie Hebdo", sendo mesmo obra de fundamentalistas islâmicos como tudo indica, ocorre em um momento de grande agitação em relação à inserção das populações muçulmanas na Europa.

Na Alemanha, marchas ocorrem contra um grupo que pretende evitar a "islamização" do continente, visto por seus opositores como aspirantes a nazistas.

O tema é especialmente sensível por lá, exatamente pelo passado de intolerância racial do Terceiro Reich (1933-45) e pela Alemanha ser o lar de uma comunidade de origem turca de mais de 3 milhões de pessoas –quase 4% da população país e integrantes importantes da força de trabalho.

Oliver Berg - 5.jan.2015/Efe
Catedral de Colônia apagada em protesto contra marcha do Pegida, que combate imigração e islã
Catedral de Colônia apagada em protesto contra marcha do Pegida, que combate imigração e islã

No Reino Unido, o governo tenta lidar com o fato de o país ser o maior exportador de voluntários ocidentais ou ocidentalizados para as fileiras dos fundamentalistas do Estado Islâmico, que ocupam partes do Iraque e da Síria, e já viveram problemas semelhantes com grupos terroristas paquistaneses. Jovens, como o brasileiro preso na Bulgária recentemente, são interceptados aqui e ali rumo ao autoproclamado califado.

Na França, o lançamento do mais recente livro do polêmico escrito Michel Houllebecq, "Submissão", provocou debates acalorados se no fundo a obra daria discurso para os ativistas anti-imigração.

No livro, é descrito um cenário fictício no qual um partido islâmico vence a disputa pela Presidência da França após siglas tradicionais se unirem a ele para evitar uma vitória da extrema-direita representada pela Frente Nacional.

O país é um campo de batalha histórico do debate sobre o choque cultural devido ao grande número de imigrantes de origem muçulmana de suas ex-colônias, como a Argélia. As estimativas variam, uma vez que a lei francesa impede em nome da liberdade de escolha que censos precisem a religião do morador, mas estão sempre entre 5% e 10% da população de cerca de 65 milhões de pessoas.

Assim, de tempos em tempos discussões irrompem sobre o convívio entre islâmicos e europeus de origem cristã. A lei francesa proibindo o uso de véus islâmicos cobrindo rostos (e também balaclavas como as usadas pelos assassinos desta quarta), de 2011, gerou debate sobre os limites do Estado sobre direitos individuais —fora acusações abertas de racismo.

O "Charlie Hebdo" sempre pesou a mão em cartuns contra muçulmanos e suas figuras religiosas, mas o ponto central de qualquer democracia é a liberdade de expressão, e a sátira é provavelmente a mais contundente trincheira desse valor.

Os longos séculos de declínio da religiosidade no Ocidente permitem que um semanário ofenda o papa ou um bispo, acusando-os de pedofilia e afins. É parte do jogo. Mas o conceito não é compartilhado na grande maioria dos países islâmicos.

Assim, é ofensivo para um muçulmano, mesmo que ele seja moderado e sem simpatia por extremistas como os integrantes do Estado Islâmico, ver qualquer imagem do profeta Maomé _quanto mais uma caricatura, mais ou menos agressiva.

Para entender isso, é preciso voltar na história. O Alcorão não proíbe a representação de figuras religiosas, mas diversos "hadith", as passagens de discursos atribuídas ao profeta, citam essa necessidade para combater a idolatria.

Tribos com ídolos próprios eram os adversários iniciais da religião no século 7º, o que levou a um banimento das imagens no ramo majoritário da religião, o sunita. Em seu lugar, desenvolveu-se a elaborada caligrafia árabe de temas religiosos, cheia de curvas insinuando imagens.

Outros ramos do Islã são mais tolerantes. Os xiitas sempre envergam imagens de seus homens santos, e são famosos por seus elaborados santuários do Levante até o Sul da Ásia. Não por acaso, fundamentalistas das áreas tribais paquistanesas e do Taleban de lá e do Afeganistão, que são sunitas radicais, destruíram e atacaram esses santuários com frequência.

A destruição dos Budas de Bamyian, pelo Taleban afegão ainda no poder em 2001, é outro exemplo do extremismo contra representações que possam ser tomadas por idolatria.

Tudo isso contextualiza, mas obviamente não explica nem justifica o horror vivido em Paris nesta quarta. A ironia mórbida é que o ataque fundamentalista tenderá a alimentar o discurso de ódio daqueles que pregam contra a crescente presença de imigrantes na Europa.


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