Folha de S. Paulo


Líder de tribo iraquiana relata engajamento na guerra contra o EI

RESUMO - Umaya Naji Jbara, 40, morreu baleada na manhã do último dia 22 de junho. Líder na tribo sunita dos juburi, no Iraque, ela vinha carregando um lançador de granadas na luta contra a milícia radical Estado Islâmico. Sua morte foi recebida como a de um mártir pelo governo local. A Folha sentou-se com seu irmão, o xeque Marwan, para ouvir a violenta história da queda das tribos sunitas no norte do país.

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Em 2003, após a invasão americana, tribos sunitas passaram a se mobilizar formando governos locais. Mas nós, em Tikrit, nos recusamos a participar da política.

Meu pai era o líder da tribo juburi e ele decidiu que o nosso distrito, Al-Alam, seria uma área segura, sem guerra contra os americanos. Ele foi sequestrado e morto. Meu irmão foi queimado vivo pela Al Qaeda, e só reconhecemos ele pela pistola que trazia.

Foi um grande sacrifício nos recusarmos ao terrorismo desde o início. Por isso somos um alvo para os militantes do Estado Islâmico.

Diogo Bercito/Folhapress
Marwan al-Juburi, líder de uma tribo que luta contra o Estado Islâmico, segura foto da irmã, que morreu em combate
Marwan al-Juburi, que luta contra o Estado Islâmico, segura foto da irmã, morta em combate

Mossul foi conquistada pelo EI em junho. Tikrit caiu alguns dias depois. Quando vimos o que estava acontecendo no país, decidimos lutar.

Al-Alam é separado de Tikrit por um rio. Nós espalhamos soldados pelas margens e erguemos barricadas. Estávamos prontos para lutar.

Também cavamos trincheiras ao leste para ataques. Ao norte, havia a tribo Azm, aliada aos terroristas, então também erguemos barricadas naquela direção.

Os homens foram à frente de batalha, acompanhados pela polícia local. Nos outros distritos, as forças de segurança se recusaram a lutar.

Minha irmã tinha desde pequena um espírito combativo. Devido ao alto número de guerras no Iraque, mulheres sabem como usar armas. Ela tinha bravura e tática.

Quando chegou a hora, ela percebeu que tinha de fazer um sacrifício e decidiu unir-se à luta. Nossa área estava cercada e era bombardeada por morteiros, e não entravam comida nem remédios.

Eu considerava ela, que era mais velha, como uma mãe. Visitava-a todas as noites. Depois da queda de Mossul, encontramos armas na casa dela e perguntamos: "Mas esse não é trabalho para homens?". Ela respondeu que era uma luta existencial.

Nessa época, dezenas de famílias haviam decidido deixar a vila pelo caminho ao nordeste, passando por Kirkuk. Mas o Estado Islâmico os sequestrou, incluindo as crianças e as mulheres. Isso afetou a nossa confiança.

Lutamos por 12 dias. O governo não nos ajudava. Pedíamos suprimentos, mas não recebíamos. Não queremos compensação, apenas esperamos que eles nos ajudem a retomar nossos lares.

Então minha irmã, que havia matado ao menos três militantes do Estado Islâmico, me pediu que levasse o marido dela para um hospital. Ele tinha uma inflamação de estômago, e na nossa região não havia médicos.

Ainda me lembro da última mensagem de texto que ela me enviou. Está guardada no meu celular. Ela me escreveu que não poderia falar ao telefone porque estava sem voz depois de tanto gritar no campo de batalha.

Dois dias depois, minha irmã morreu por tiro de franco-atirador. Foi outro golpe no nosso moral. Vimos, então, que a batalha ali era um caso perdido. Todos os juburis saíram da tribo. Éramos 40 mil antes daquela guerra.

Não ficamos tristes com a morte da minha irmã, mas felizes em tê-la como membro da família. Consideramos a morte dela como a nova data de seu nascimento, pois foi quando ela começou uma nova relação com Deus.

Fugi na direção de Irbil, ao norte. A estrada era perigosa e me tomou dois dias. Era difícil me comunicar com o governo central e saber o que estava acontecendo. Decidi vir à capital, Bagdá.

A primeira pessoa com quem me encontrei foi o ex-primeiro-ministro Nuri al-Maliki. Expliquei a ele quão grave era a situação. Ele entendeu a seriedade, mas era tarde demais.

Fomos em seguida a Karbala e nos encontramos com a liderança religiosa xiita ali para pedir ajuda.

Queríamos unificar sunitas e xiitas, para uma sensação de unidade religiosa nacional. Me lembro que os líderes xiitas haviam elogiado os esforços da nossa tribo.

Como iraquianos, não acreditamos em "sunitas" e "xiitas". Somos todos muçulmanos. Tenho primos xiitas em Najaf, e sou sunita de Tikrit [região do ex-ditador Saddam Hussein]. Temos os mesmos ancestrais. As diferenças vêm das políticas.

O Estados Islâmico tem a ver com os erros crescentes durante os últimos oito anos de governo.

Havia uma desproporcionalidade de xiitas no setor público e também no civil. Havia uma má distribuição do poder. O que vemos hoje no Iraque é um dos resultados dessas ações.

Ninguém previa o surgimento do EI, mas sabíamos: alguma coisa estava vindo.

No começo, as pessoas falavam que todos os sunitas eram terroristas. Mas, quando tribos sunitas como a nossa morreram, eles viram que o Estado Islâmico é uma organização terrorista, e não "sunita". É uma ideologia.


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